Gavroche é o nosso Fabrício
A personagem Gavroche de Victor Hugo sempre me fascinou. A cena de sua morte para mim é uma das grandes distopias revolucionárias, momento de grande tristeza e dor, mas também de ato heroico.
É a visão humanizada do vagabundo, eternizada em uma das grandes cenas da prosa universal. Estou escrevendo um romance em que uma das personagens é Fabrício, um menino do tráfico. Como ninguém é do tráfico, as pessoas estão nele, apresento a vocês essa personagem humanizada do meu romance (que está ainda sendo escrito) chamado O MANÍACO DAS ONZE E MEIA. A cena que segue é a morte de Fabrício, em um confronto que lembra a humanização do bandido, também explorada em Hugo. Segue o texto na íntegra:
" Fazia um tempo que o filho de Ana já tinha saído da cadeia. Fabrício agora morava no morro, numa região não tão distante do centro, mas longe de todos. Ele era responsável pela circulação de drogas naquela região. Ana ia visitá-lo periodicamente. Agora ela ia ser avó. Fabrício tinha engravidado uma menina de 14 anos e estava morando com ela.
– Tanto conselho que eu dei – dizia ela a uma
vizinha na frente do filho.
– Se conselho fosse bom, vendia no centro comercial,
mainha – ele desprezava o conselho.
Todos
ali sabiam do envolvimento dele com o tráfico. Mas era homem respeitado, como
os pretos do tráfico, desses que não deixam ladrão invadir a casa de ninguém
para roubar. Ali janela dormia aberta e ninguém entrava. Medo mesmo só da
polícia, que quando subia o morro era para fazer a limpeza de sempre. Ana
estava tentando arrumar um trabalho para o filho, mas a remuneração era sempre
um problema. Volta e meia ela pedia a Jurinho que arrumasse algo na prefeitura.
Por
outro lado, Fabrício não queria. O tráfico era a grande oportunidade de
reconhecimento entre os seus. Desde que saiu da cadeia foi para o tráfico que
voltou, e foi o tráfico que o abraçou. Para ele não havia grandes oportunidades
fora daquilo. O negócio era quase eficaz: proteger o território, controlar a
grana e a circulação para impedir a entrada dos “alemão”, que era como os
inimigos eram chamados no morro. É claro que a providência para impedir a
entrada da polícia também era “molhar” a mão dos policiais e garantir que
somente os “vacilões” fossem presos.
Não
era um negócio difícil. Era um negócio em disputa. E a disputa era por mais
poder e mais dinheiro. A maioria da ordens vinha de dentro da penitenciária. Os
ditos bandidos mais perigosos eram transferidos e o comando volta e meia mudava
de comandante. Foi numa dessas que Fabrício se deu mal.
Era
menino ainda. Negro na casa dos 20, forte e alto, disciplinado no que resolveu
fazer da vida. Voltar para a cadeia jamais. A liberdade é o vão do mundo. Dizia
sempre para si mesmo. Mas agora o território estava em disputa e tinha um bebê
para criar. A polícia, essa que não garante a segurança de ninguém, não ia
interferir nessa disputa, ao menos enquanto o dinheiro mandasse. O território é
de quem o ganha e é mantido pela polícia por quem o ganha através da boa
propina. Por isso não era interesse impedir o confronto, desde que o confronto
não impedisse a polícia.
Um
desses confrontos aconteceu numa certa quinta-feira, que lembra a barricada das
manifestações da Revolução Francesa, em que Gavroche catou as balas do chão.
Fabrício é o nosso Gavroche preto, o grande personagem da nossa maior insígnia
social. O personagem entre as balas da facção inimiga e a inocência de nunca
ter participado de um confronto direto na favela. Preso e mantido preso sem julgamento
durante anos, Fabrício não sabia o que era briga por território, assim como
para Gavroche pouco importava a Revolução Francesa ou a manutenção do Antigo
regime. A miséria era infinitamente a mesma. As revoluções não importam para
aqueles que não a fazem diretamente com seu suor. Tal era Gavroche. Tal era
Fabrício. O dono da arma é o dono do confronto, mas nem sempre o que entende o
confronto. Quando se participa de uma guerra de morros, não se sabe direito
qual o sentido do confronto, mas que é preciso confrontar.
Foi
sem saber e nem ter sentido, que ele sabia que não poderia desistir jamais. Mas
desistiu. Desistiu não como Gavroche, pois este nunca foi soldado de força
nenhuma, senão da história. O nosso Gavroche é uma grande personagem que
desistiu no meio da troca de tiros, no momento do salve geral em que a força
tática da polícia militarizada subia o morro. Três forças trocavam tiro, e uma
delas era a polícia. O lamento e a atitude eram paródia da história que se
repete ou como tragédia, ou como farsa. E como tragédia, Fabrício parou para
pegar munição. E como tragédia, avistou uma cápsula de bala no chão. E como
tragédia, foi atingido por um tiro de fuzil no pescoço. E como tragédia, morreu
ali, era só sangue. Sua língua era sangue. Seu território era sangue. Sua bandeira
era sangue. Seu povo era sangue. E sangue era sua história. E como farsa, foi
mais uma morte registrada como morte no tráfico."
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