sábado, 1 de agosto de 2015

Gavroche é o nosso Fabrício

A personagem Gavroche de Victor Hugo sempre me fascinou. A cena de sua morte para mim é uma das grandes distopias revolucionárias, momento de grande tristeza e dor, mas também de ato heroico.
É a visão humanizada do vagabundo, eternizada em uma das grandes cenas da prosa universal. Estou escrevendo um romance em que uma das personagens é Fabrício, um menino do tráfico. Como ninguém é do tráfico, as pessoas estão nele, apresento a vocês essa personagem humanizada do meu romance (que está ainda sendo escrito) chamado O MANÍACO DAS ONZE E MEIA. A cena que segue é a morte de Fabrício, em um confronto que lembra a humanização do bandido, também explorada em Hugo. Segue o texto na íntegra:


"            Fazia um tempo que o filho de Ana já tinha saído da cadeia. Fabrício agora morava no morro, numa região não tão distante do centro, mas longe de todos. Ele era responsável pela circulação de drogas naquela região. Ana ia visitá-lo periodicamente. Agora ela ia ser avó. Fabrício tinha engravidado uma menina de 14 anos e estava morando com ela.

– Tanto conselho que eu dei – dizia ela a uma vizinha na frente do filho.
– Se conselho fosse bom, vendia no centro comercial, mainha – ele desprezava o conselho.
            Todos ali sabiam do envolvimento dele com o tráfico. Mas era homem respeitado, como os pretos do tráfico, desses que não deixam ladrão invadir a casa de ninguém para roubar. Ali janela dormia aberta e ninguém entrava. Medo mesmo só da polícia, que quando subia o morro era para fazer a limpeza de sempre. Ana estava tentando arrumar um trabalho para o filho, mas a remuneração era sempre um problema. Volta e meia ela pedia a Jurinho que arrumasse algo na prefeitura.
            Por outro lado, Fabrício não queria. O tráfico era a grande oportunidade de reconhecimento entre os seus. Desde que saiu da cadeia foi para o tráfico que voltou, e foi o tráfico que o abraçou. Para ele não havia grandes oportunidades fora daquilo. O negócio era quase eficaz: proteger o território, controlar a grana e a circulação para impedir a entrada dos “alemão”, que era como os inimigos eram chamados no morro. É claro que a providência para impedir a entrada da polícia também era “molhar” a mão dos policiais e garantir que somente os “vacilões” fossem presos.
            Não era um negócio difícil. Era um negócio em disputa. E a disputa era por mais poder e mais dinheiro. A maioria da ordens vinha de dentro da penitenciária. Os ditos bandidos mais perigosos eram transferidos e o comando volta e meia mudava de comandante. Foi numa dessas que Fabrício se deu mal.
            Era menino ainda. Negro na casa dos 20, forte e alto, disciplinado no que resolveu fazer da vida. Voltar para a cadeia jamais. A liberdade é o vão do mundo. Dizia sempre para si mesmo. Mas agora o território estava em disputa e tinha um bebê para criar. A polícia, essa que não garante a segurança de ninguém, não ia interferir nessa disputa, ao menos enquanto o dinheiro mandasse. O território é de quem o ganha e é mantido pela polícia por quem o ganha através da boa propina. Por isso não era interesse impedir o confronto, desde que o confronto não impedisse a polícia.
            Um desses confrontos aconteceu numa certa quinta-feira, que lembra a barricada das manifestações da Revolução Francesa, em que Gavroche catou as balas do chão. Fabrício é o nosso Gavroche preto, o grande personagem da nossa maior insígnia social. O personagem entre as balas da facção inimiga e a inocência de nunca ter participado de um confronto direto na favela. Preso e mantido preso sem julgamento durante anos, Fabrício não sabia o que era briga por território, assim como para Gavroche pouco importava a Revolução Francesa ou a manutenção do Antigo regime. A miséria era infinitamente a mesma. As revoluções não importam para aqueles que não a fazem diretamente com seu suor. Tal era Gavroche. Tal era Fabrício. O dono da arma é o dono do confronto, mas nem sempre o que entende o confronto. Quando se participa de uma guerra de morros, não se sabe direito qual o sentido do confronto, mas que é preciso confrontar.
            Foi sem saber e nem ter sentido, que ele sabia que não poderia desistir jamais. Mas desistiu. Desistiu não como Gavroche, pois este nunca foi soldado de força nenhuma, senão da história. O nosso Gavroche é uma grande personagem que desistiu no meio da troca de tiros, no momento do salve geral em que a força tática da polícia militarizada subia o morro. Três forças trocavam tiro, e uma delas era a polícia. O lamento e a atitude eram paródia da história que se repete ou como tragédia, ou como farsa. E como tragédia, Fabrício parou para pegar munição. E como tragédia, avistou uma cápsula de bala no chão. E como tragédia, foi atingido por um tiro de fuzil no pescoço. E como tragédia, morreu ali, era só sangue. Sua língua era sangue. Seu território era sangue. Sua bandeira era sangue. Seu povo era sangue. E sangue era sua história. E como farsa, foi mais uma morte registrada como morte no tráfico." 

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