Apropriação cultural, folclorização cultural e oportunismo
O estudo sobre as culturas é algo muito denso e se divide entre muitas densas correntes teóricas e políticas. O século XX é um eclipse dessas teorias e correntes todas. A semiologia do início do século, por exemplo, constrói na faceta do signo a primeira ponte para sua relação na cultura. Há aqueles que creem na cultura como um mecanismo sumamente organizado e mecanicamente administrável pela própria cultura. Os freudianos e adeptos da Psicanálise se apropriaram dessa análise e fundaram escolas de pensamento baseadas na ideia entre hábitos culturais e formação do indivíduo através do id, ego e superego, além de usarem a excelente teoria freudiana do toque nas mais diversas culturas primitivas. Há também os marxistas que, embora discutam pouco cultura, chegam a minimizá-la até boa parte do século XX, perdendo espaço para os liberais, mas não deixam de ter vozes como Lúkacs e Bakhtin, embora num viés histórico, político e econômico.
Falar de cultura nos tomaria um século de discussões, mas eu venho hoje aqui falar mesmo é de apropriação cultural. O termo que vem gerando polêmicas saudações de Facebook só voltou com toda graças ao retorno da estética ao centro da roda. Adereços como o turbante e lenços, advindos das culturas africanas, cujas elites usavam para se diferenciar, voltaram com toda ao Brasil através da valorização estética do negro brasileiro. O Ilê Ayiê representa muito essa guinada da valorização desde 1974.
A apropriação cultural entra na pauta justamente depois do crescimento da autodeclaração e vitórias sucessivas do movimento negro em relação à identidade, (re) distribuição e reconhecimento. A pertença, como mistura entre (re) distribuição, reconhecimento e fenótipo passa a habitar o imaginário da luta do movimento negro. Porém, tanto a autodeclaração quanto a estética passam por apropriações distintas. A estética desperta nas camadas médias desde uma tentativa de aproximação até um oportunismo de classe.
Como nos alerta o filósofo francês Jacques Rancière, é bom se preocupar com a estética quando falamos em política. É precisamente o jogo da estética e sua suplementação que vai permitir que um signo cultural do povo negro passe para o inventário da suposta valorização do "outro" (no caso dos brancos) como oportunismo de classe. O salvacionismo da estética é tão bem disputado que a afirmação do signo cultural, no caso do turbante e demais signos usados alhures, passam de (auto) afirmação para a máscara do outro. É nesse ponto que entra a folclorização cultural.
O linguista russo Mikhail Bakhtin tem um termo que, se não for bem usado aqui, pelo menos ajudará a entender como os signos de reafirmação passaram a ser entendidos: carnavalização. Aqui, e para ser mais didático, chamarei de folclorização. É precisamente nesse ponto que empacamos. Primeiro porque, como disse, a autodeclaração e afirmação criaram inimigos perigosos no terreno da identidade, ligadas às condições dos fatores econômicos, políticos e sociais que buscaram lhe cooptar. O capitalismo, nessa sua nova fase trata, de transformar tudo em item consumível. Os signos afrobrasileiros não escapam. Com isso, se espera que toda identidade possa ser consumida como capital simbólico. É um fato da nossa era que temos que tentar entender. Como esses signos viram mercadoria, é precisamente claro que se possa entender que, o que constrói essa polêmica, está no plano do sujeito e não do indivíduo. O sujeito, aqui não desprovido de contexto, sendo negro, usa o turbante para se autoafirmar e se autovalorizar, mas se incomoda com a forma como o seu signo virou apenas mercadoria, com valor de troca bem definido.
O jogo do discurso sobre a apropriação cultural só pode ser entendido se você julgar que nenhuma apropriação é neutra. Elas existem alicerçadas sobre discursos, como é o caso o da (auto) afirmação e do consumo. Como os discursos só são discursos sob a égide da história e do sujeito, é preciso destacar que só sob a tutela do neoliberalismo qualquer coisa pode ser operativa e, portanto, produto. A estética está nesse jogo. O cânone, através dos meios de produção, diz o que é que deve ser "valorizado" e aquilo vira produto. Coloco aspas em valorizado porque o cânone não valoriza de fato nada disso. O mercado, agindo sobre o cânone, disponibiliza e mercantiliza tudo quanto pode, até a identidade. É assim que o mundo ocidental, através do neoliberalismo, coopta quase tudo que não tem militantes atentos e é contra o neoliberalismo que as identidades negras de autoafirmação protestam.
Nesse jogo, o caso de uma menina branca, com câncer, que supostamente foi atacada por mulheres negras que julgaram que ela não deveria usar turbante porque era branca reabre a temporada das polêmicas sobre "apropriação cultural". Como não vi gente séria fazendo esse coro, eu resolvo por entender que o velho oportunismo de sempre, que sempre faz verão reacendendo o debate sobre a suposta democracia racial brasileira, agora se traveste na ideia de "racismo inverso" ou racismo contra brancos.
Nenhum negro se sente inferiorizado com um branco usando seus signos por usar. Mas, como disse acima, já que nenhuma apropriação é neutra, temos motivo de sobra para desconfiar de qualquer uso. E a cooptação pelo capitalismo é um deles. Não por acaso estamos no carnaval onde o negro é sempre usado para ser "engraçado", "fanfarrão" ou, na pior das hipóteses, dançarino de branco. O turbante reacende o debate porque, como retomado como signos dos negros para se sentirem melhor e valorizarem sua identidade, passou a ser o negócio da China. A identidade do carnaval neutraliza a crítica cultural e ideológica e as coisas são vistas apenas como "motivo de alegria". Um grande equívoco. No caso do carnaval, e não do uso cotidiano, as pessoas brancas folclorizam em demasia a identidade negra, agora cooptada e usada apenas como mercadoria. E é o debate de folclorização que quero fazer, já que defendo que a apropriação é um processo (não neutro) da cultura. Nos blocos de carnaval, o turbante vira fantasia, as pinturas da Timbalada viram fantasia, o negro vira fantasia. Se não nos incomodamos com isso, nós não entendemos nem metade da profundidade do debate.
Toda pessoa que queira se apropriar de ícones de outras culturas (e nós negros não estamos isentos) deve saber das consequências. Uma delas é o questionamento da identidade. E como a identidade também não é neutra e é formada principalmente pelos aspectos econômicos e políticos, aqui estamos falando de poder, de macro e microfísica do poder. Não é apenas uma questão de direitos civis, como alguns protestam. O discurso dos direitos civis no mundo ocidental só serve para enquadrar inimigos do Norte, como é o caso da criação do Islã como o inimigo central. O jogo da identidade precisa se preocupar geopoliticamente com isso ou entramos numa encruzilhada desnecessária entre a suposta neutralização e o afã político.
A menina branca que usa turbante discute valorização da estética do povo negro ou usa aquilo como "seu ícone" e apaga o outro? Se não reflete, ela faz a mesma coisa que as pessoas que tiram foto em campo de concentração. E se o faz deveria saber que nenhum signo é sem história e sem sujeitos. É essa a discussão a ser feita aqui em primeiro lugar para combater o que chamo de folclorização. A outra coisa é a representação que esse branco de elite ocupa e que os negros ocupam no carnaval. A branca de turbante desfila os melhores camarotes e blocos com a consciência limpa de quem não sente a morte de dezenas de milhares de jovens negros todos os anos? Então nesse caso ela está folclorizando a cultura, como se faz sempre sem nenhuma reflexão.
Os limites entre o que chamo de folclorização e apropriação são tênues. A apropriação, embora não neutra, existe aqui e ali, agora e sempre, por todos, de absolutamente tudo. Ela é arrefecida pelo consumo. A folclorização é o uso dessa apropriação para o fetiche do signo cultural como mercadoria. O elo entre produtores diretos e indiretos da cultura é perdido e abre-se uma temporada de espaços, contexto e épocas em que essas "máscaras" aparentemente ingênuas são usadas. O maior exemplo é o próprio carnaval. O branco que sai no Gandhy para "pegar mulher" está imerso nessa folclorização intensa, muitas vezes sem parar 5 segundos para refletir. As cantoras brancas do carnaval que dançam e cantam música de preto homenageando os blocos afros da cidade também. E a Black face brasileira não topa ser questionada a título de tirar o armário a sua acusação frágil de "racismo inverso", negando o racismo como processo e assumindo a alma histórica da Casa Grande que passou a comer farinha ao mesmo tempo que matava índio. É intransponível o discurso metido a ingênuo da (des) construção da chamada apropriação cultural porque ele não reflete esse passado, os seus sujeitos e suas posições históricas. É o mesmo discurso que reza a famosa lenda da miscigenação neutra e do racismo sem racista. É o mesmo discurso do mito da não-violência e do homem cordial, tanto usados por Marilena Chauí, numa perspectiva um pouco mais crítica, quanto pelo bíblico Sérgio Buarque, numa péssima perspectiva.
Não devemos e nem podemos dar lugar para o oportunismo. De quando em quando ele vem sendo repetido pelos próprios negros e negras que entram em polêmicas desnecessárias com uma postura não reflexiva e absolutamente defensiva. O negro que é apropriado pelo "Esquenta" da Rede Globo não chora a morte das suas dezenas de milhares de irmãos que morrem todos os anos porque ele foi apropriado pelo centro e folclorizado pelo poder econômico, gerando a conveniência do discurso de superação de sempre e o troféu dos brancos dos meios de produção de sempre. Estejamos atentos para essas polêmicas divisionistas e racistas.
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