Negro de pele (mais) clara é diferente de branco afroconveniente
Um povo que tem direito à história do seu povo é um povo que se autoafirma constantemente. No Brasil, e até chegarmos à mais recente legislação, a autodeclaração foi um fortuito e grande dispositivo para dar visibilidade ao nosso povo, mas também permitiu a deixa da afroconveniência de alguns.
Fico extremamente preocupado quando leio que "todo mundo está querendo ser negro", ou que "agora é bom ser negro". Isso revela que as máscaras do racismo se modificam e que elas não são menos perigosas por causa disso.
A autodeclaração por si só não criou a afroconveniência. Quem a criou foram os privilegiados de sempre que não aceitam perder os privilégios. A implementação de cotas nas universidades, começando pelas estaduais, gerou um pânico em alguns setores brancos da sociedade brasileira e pessoas brancas de diversas camadas socioeconômicas acharam um inimigo comum: o acesso ao ensino superior para gerações inteiras que seriam as primeiras de suas famílias a entrar numa universidade. Foi o meu caso.
Por mais incrível que pareça, a autodeclaração nos deu muita paz em tempos de mudança assertiva do pensamento humano no fim do século XX. Milhões de pessoas que acabavam se declarando como pardas, mulatas, morenas etc. começavam a se declarar negras e essa era uma luta que tinha começado lá atrás na cultura e na história, e não era somente produto da pura legislação. Era produto de muita luta e suor, e isso não se joga na lata do lixo da história por hipótese alguma.
No fim, o branco se deu conta de que era possível assumir o discurso do genótipo para dizer que, como na história de alguma geração de sua família houve algum negro por lá, portanto ele também podia se assumir negro. À tona está aí retorno em grande estilo do discurso quase-pronto biologicista que foi combatido no século XX.
A autodeclaração, dispositivo de justiça social, agora se tornaria uma máquina de fraude política e histórica. Essa máquina de fraude já vem sendo tema do imenso debate dos demais setores do movimento negro.
No entanto, com o debate sobre "colorismo" (Abra aqui e saiba mais sobre "colorismo"), sobram algumas dúvidas sobre a possibilidade de negros com pele mais clara estarem fraudando o sistema de ações afirmativas tanto nas universidades quanto nos concursos públicos federais. Não deveriam sobrar dúvidas, mas argumento aqui em favor da diferença fundamental entre negro de pele clara e branco afroconveniente.
Não jogando um papel central na discussão do "colorismo" no Brasil (afinal o nosso racismo não é por genótipo, mas não é só essencial e genuinamente por fenótipo, mas principalmente por causa dele), a maioria das fraudes nas ações afirmativas vêm de brancos, de pele clara e traços brancos, de classe média, que não sofreram racismo nenhum dia de suas vidas e ainda assim querem concorrer por meio da reserva de vagas para negros.
Uma professora universitária, num congresso que fui recentemente, alertava que jovens brancos de classe média, inclusive, raspam suas cabeças e permitem à pele ficar com traços mais "encardidos" para, supostamente, se passarem por negros. Isso nada tem a ver com o negro de pele mais clara que, por vezes, ao cativar todos os outros traços da negritude, estão integrados no imenso sistema de exclusão do racismo estrutural.
Como o racismo no Brasil tem uma relação intrínseca com classe social, a maioria dos negros de pele mais clara está na periferia e não nos bairros de classe média. Esses não são, nem de longe, aqueles que estão querendo fraudar as cotas na universidade, no concurso público ou no Itamaraty.
Por outro lado, os excelentes argumentos sobre o "colorismo" no Brasil não podem esquecer que o fenótipo não é apenas biológico, mas político e histórico. O corpo só é o corpo porque existe político e historicamente para ser o corpo, dentro de uma dada materialidade histórica, temporal e espacial. Assim sendo, o fenótipo não é uma categoria apenas "biológica" e "genética". Aliás, lutar contra o racismo no colonialismo precisa ser uma tarefa que exige analisar a história dos corpos negros e como eles estão sendo visto há séculos. É necessária uma genealogia profunda da questão etnicorracial no Brasil, o que não foi enfrentado até agora como algo sério a ser feito.
É óbvio que o racismo se dá em hierarquias, e essas hierarquias interpõem silenciamentos e opressões cada vez maiores para quem tem mais traços de distinção do branco, europeu, branco. Entretanto, essas distinções são signos cada vez mais presentes e representáveis nas instâncias do Estado e entre nós, negros e negras, sem consciência. É o caso do negro de pele clara que alisa seu cabelo para se distinguir do seu igual e acha que passa por branco nos mais diversos lugares.
No entanto, esses traços de diferenciação não importam tanto para as elites brancas. Para as elites brancas, quatrocentonas, rentistas e aristocráticas, o preto, de pele clara ou escura, sempre será um preto.
Portanto, enxergando as hierarquias que o racismo impõe, é preciso não se confundir entre o negro de pele (mais) clara e o branco afroconveniente. Ter uma amiga negra chamada de "branca" por ter a pele (mais) clara não ajuda na luta contra o racismo porque o inimigo de verdade está lá fora e nós entre nós saberemos sempre nos resolver, a nosso tempo e modo histórico, no que couber, e quando couber. Por enquanto, o inimigo é o fantasma do colonialismo. Não nos confundamos nem nos separemos.
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