Os brancos deviam falar entre si sobre racismo
Vejo corriqueiramente e atualmente muito afã das pessoas em geral querendo debater raça. Tenho visto principalmente pessoas brancas que, ou questionam o lugar de fala de negros e negras, ou sentem uma ansiedade imensa de falar de raça/racismo.
A Internet fez surgir uma legião deles. Isso não seria ruim se algumas dessas pessoas não quisessem, de maneira tão intensa e fortuita, falar de raça e racismo para e pelos os negros. Mas não somos nós que estamos separados no discurso ou separamos raça e racialidade de sujeito. Isso em geral é um produto do privilégio branco.
Explico: a construção da racialidade é um processo histórico. No entanto, com o moderno aparelho racista se modernizando e se atualizando, a branquitude tem negado, por meio de vozes oficiais e extraoficiais, a sua participação nos regimes cruéis como o colonialismo e a escravidão.
Essa negativa tem a ver como a possibilidade do branco não se sentir culpado por um sistema que teve, muitas vezes, um ancestral seu como cúmplice. É preciso ainda que o branco saiba que ele pode não ser culpado diretamente por esses regimes, mas a branquitude o é.
Reconhecer isso é não separar racialidade de sujeito. E, em geral, essas pessoas brancas que querem tanto falar sobre raça e racismo não separam. E sabe qual o elemento central desse erro crasso? O elemento central é que elas querem falar para e pelos negros.
Isso significa que nós não nos incomodamos com pessoas brancas que falam sobre raça e racismo. No entanto, o uso da hierarquia social e racial para falar sobre raça e racismo para e pelos negros é um dispositivo que identifica rapidamente esse comportamento epistêmico racista.
No entanto, querer falar para os negros (sobre raça/racismo) revela uma característica epistêmica muito comum do racismo à brasileira: o epistemicídio. O epistemicídio é o apagamento da voz do outro através de uma dada hierarquização social e racial.
Nós negros estamos historicamente acostumados a ver brancos falando para nós com uma dada autoridade racial, ainda que simbólica. "Racismo é coisa da sua cabeça", "É só não discutir que ele não existe", "Vocês são os próprios racistas", "Todos somos humanos e só existe a raça humana" são algumas das pérolas que ouvimos historicamente. Ou seja, não é novidade que os brancos falem para nós de raça/racismo. A novidade agora é que alguns, disfarçados de alguma espécime de progressismo conservador, se entendam no direito de dizer o que é e o que não é racismo. Trata-se da relativização conceitual que essa atual fase do pensamento ocidental, arrefecida pelas mudanças estruturantes no capitalismo, tem trazido à baila. Usa-se desse dispositivo, portanto, para apagar e minimizar os problemas do outro.
Na linguagem e pesquisa do antropólogo Kabengele Munanga, sobre o racismo enquanto crime perfeito, enquanto se autointitulam e se autorizam para falar sobre raça e racismo, essas pessoas brancas se negam enquanto racistas. Ou seja, trata-se de mais uma faceta do racismo à brasileira em sua fase cordial. É a necessidade de negar o racismo ou relativizá-lo que o torna tão forte entre nós. Em outras palavras, o posto não nega o pressuposto. Quando você diz "Você é preto, mas é inteligente" você pressupõe que pretos não são inteligentes. No entanto se você diz para uma mulher negra "que mulher negra bonita" e isso não é comum dizer "que mulher branca bonita" você produz mais um pressuposto que não é negado pelo posto, ainda que você se explique e diga não. Quanto mais explica, mais reforça o pressuposto. Explico: quando você diz "não, eu não estou dizendo que negras não são bonitas", o núcleo que dá sentido ao seu enunciado é "negras não são bonitas" e é esse o pressuposto construído desde o início. Parece um rua sem saída? É só você ver como é racialidade que constrói esse repertório linguístico.
Como dizia o filósofo Achille Mbembe, é preciso que a gente nunca separe raça de racialidade em nossa crítica negra. Por isso, é preciso lembrar às pessoas brancas que elas têm os dois, raça e racialidade.
A raça é a construção sociocultural, histórica e política distribuída através dos mecanismos de estratificação social e racial que se impõem ao sujeito, tanto simbólico quanto concretamente, e permitem que ele se reivindique e se entenda nesse tipo de mecanismo para existir. Trata-se de um condicionante que atua num sistema como o capitalista de modo a lhe subsumir e lhe reduzir a existência, seja através da manutenção de forças produtivas adequadas a um status quo escravista e colonialista ou do próprio discurso sistêmico sobre o mundo do trabalho.
A racialidade é a ilocução do sujeito, a próprio espaço de atuação desse sujeito através do condicionante racial. Nós negros, em geral, não conseguimos separar racialidade e raça porque esses dois atuam em conjunto nas formas que somos discriminados, reduzidos e explorados.
Os brancos não. Desde o fim da escravidão e com o crescimento e valoração do discurso dos direitos humanos de forma secularizada no mundo ocidental, existe uma investida no pensamento hegemônico de separar raça e racialidade. Ou seja, o sujeito nega que a branquitude seja culpada e cúmplice das mazelas que ainda hoje dificultam e impossibilitam a vida do povo negro e, ao negar isso, o sujeito se isenta de responsabilidade na discussão sobre racismo.
A isenção também é dada quando essas pessoas querem falar de racismo pelos negros. Essa é uma característica mais comum do racismo epistêmico no Brasil. A Academia brasileira é quase um palácio celestial onde ocorre esse tipo de acontecimento. Nela, não raramente, as pessoas não fazem nem mea culpa para se perceberem dentro de uma racialidade que envolve o privilégio branco. Elas simplesmente falam sobre aquilo e acabou.
Não temos absolutamente nada contra pessoas brancas que pesquisam sobre racismo. Isso não é o problema. O problema é quando a pessoa não percebe o lugar de onde fala. A feminista, de origem panamenha, Linda Alcoff critica duramente esse tipo de atitude, e revela que, para as pessoas brancas, elas não estão investidas numa racialidade ao falar de raça. Elas se enxergam (ou muitas dessas fingem enxergar) que estão num espaço de neutralidade.
Por isso, é preciso que as pessoas brancas conversem (e muito) entre si sobre raça e racialidade. Nos jantares, nos bares dos centros urbanos, nas festas de formatura. Que essas pessoas que querem lutar tanto pelos avanços sociais não tenham medo de conversar nesses contextos, para que outras pessoas brancas possam também debater mais sua racialidade.
É preciso, antes de tudo, desnudar a racialidade. E isso é pauta para as pessoas brancas que querem falar tanto sobre racismo. Elas são e sempre serão bem-vindas ao debate, contanto que façam o dever de casa.
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