"Eu também já fui branco": de como a clínica do sujeito negro afeta sua vida
Uma das coisas mais extraordinárias que se pode tirar da obra do filósofo camaronês Achille Mbembe é a ácida crítica que ele faz da chamada clínica do sujeito. Para além de suas críticas à ingenuidade da autodeterminação, tanto advindas das vozes pan-africanistas quanto de demais vozes, a noção de sujeito em Mbembe, especialmente em Crítica da Razão Negra merece especial destaque.
Não quero aqui nem de longe resumir o seu pensamento que, além de fundamental, traz peculiaridades que, só lendo a sua obra, podemos descobrir.
Negro é um nome que me foi dado por alguém, inicia sua perfeita arguição o filósofo. É preciso, portanto, ter clareza de que, a reação aos efeitos do racismo, que nomeia as identidades e as posiciona na hierarquia racial e de classe, pode vir em negativa da identidade ou em autoafirmação (que aqui não se confunde com a crítica do filósofo à autodeterminação).
Negro é uma inscrição, portanto, na estrutura do discurso ocidental, no macro e micropoder, na estruturação das grandes narrativas. Não se pode negá-lo ou afirmá-lo, sem lembrar quem o nomeou estruturalmente, e para que ele foi nomeado.
A identidade não é só um objeto de reivindicação do sujeito, como a crítica culturalista ingênua tenta fazer há décadas. A identidade, sobretudo em sua inscrição no capitalismo, como mais importante sistema econômico ocidental, é muito mais uma imposição ao sujeito que, ao tê-la imposta à sua personalidade, e ao ser a identidade a personalidade inseparável do sujeito, o próprio sujeito muitas vezes não consegue fazer uma separação crítica dela nem em reflexão.
É uma discussão difícil porque merece várias encruzilhadas epistemológicas. Uma delas, é claro, vem sendo debatida pelo movimento negro, que é a difícil relação entre dois extremos: a autoafirmação etnicorracial e a afroconveniência. Isso porque o sujeito que se autoafirma, muitas vezes, só o faz porque, muitas vezes mesmo não sendo negro, tem interesses muito definidos na garantia de direitos dos negros e negras.
É uma dimensão difícil porque o Negro, a quem essa identidade foi imposta na estrutura racial e de classes brasileira, através do chicote e da escravidão, na maioria das vezes se negou. Essa clínica do sujeito que "também já foi branco", agora se autoafirma com muita dificuldade.
Os direitos ajudaram muito nessa clínica.
É preciso, entretanto, recorrer ao filósofo Jacques Derrida quanto ao sentido da palavra negro, que teve o sentido originário sempre suplementado. A inscrição do negro de forma biológica deu lugar a um negro de direitos, muitas vezes usurpado de seus direitos pelo próprio privilégio branco que, ao enxergar qualquer brecha, tenta roubar-lhe de seu lugar. Nesse caso, uma suplementação de sentido na clínica muito parecida com uma farmácia que adoece o sujeito, para fingir curá-lo.
O racismo não pode me fazer de doente para me curar. Os dois sentidos do negro são sempre usados pela branquitude, e esse é o sentido mais caro de construção da minha racialidade. Ela se afirma mais em resistência do que em essência.
Por isso, a noção de clínica do sujeito é tão importante em Mbembe. Isso porque ele entende que a ação do colonizado é sua maior arma emancipadora. A nossa racialidade negra está nessa grande luta do capitalismo, usada como base na divisão do trabalho, provida aqui e acolá originariamente no colonialismo e na condição servil dos negros e negras, e agora suplementada pela usurpação dos direitos e criminalização e morte aos nossos corpos.
Para ver mais: MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.
2 comentários:
Ótimo texto!
Porque eu tenho que dar uma identidade a alguém? Para localizá-lo, exercer minha força e, meu poder. Assim, posso desconstruí-lo como sujeito!
Amei a reflexão, Gabriel!
!agora que descobrimos quem realmente somos e o que fizeram conosco, nossos antepassados, podemos usar a nossa racialidade como instrumento para a LUTA POLÍTICA. beijos!!!
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