O tráfico também empodera o povo negro
Foto: Beto Junior/Correio
Precisamos falar de
poder. Sério. Seríssimo. E, como sempre defendo o empoderamento do meu povo, o
povo negro, hoje quero falar um pouco das diversas construções de sentido do
termo “empoderamento”.
Assim como tenho falado
que o termo “local de fala” pode ser entendido através do lócus de enunciação
do sujeito, o mesmo se dá com o termo “empoderamento”.
Empoderamento é o ato
histórico de conquista do poder. No entanto, não há um só poder. Como bem disse
Foucault, o poder está em toda parte e traduzido de diversas formas. Porém, é
na interpretação profunda que Achille Mbembe faz da razão negra que podemos
entender que poder é signo e, como signo, pode se dar sob o próprio
aparelhamento da branquitude.
Da branquitude e do
capitalismo.
Num sistema capitalista
não só é necessário ser antirracista, é preciso ser anticapitalista.
Iniciei este texto com
um título polêmico que me retorna ao lugar de onde vim. Nele, muitas vezes, o
tráfico é a única forma de empoderamento do povo negro. Longe de romantizar
esse lugar (que não é dominado pelos negros daquele lugar, mas por senhores de
escravos que, historicamente, são flagrados dominando o mercado de drogas na
América Latina e permanecem impunes), o tráfico não pode ser romantizado. É
sobrevivência e, nesse sentido, espaço de contingência. Na cabeça de um jovem
de 15 anos, esquecido pelo aparato estatal e distante da escola e do trabalho,
de um trabalho decente, a metralhadora é, literalmente, a sua arma mais próxima.
A forma de exercer poder ali mais próxima é aquela.
Nem o tráfico pode ser romantizado e nem o
traficante. Nessas idas e vindas, conversando com um irmão desses que vive de “bicos”
no tráfico, ele me dizia, a despeito do poder: “são eles que me dá as coisa”,
sem completar que não tinha como virar as costas para eles.
É uma grande e
incorrigível rede de empoderamento. Mas empoderamento via capital. É lógico que
esse empoderamento não é o mesmo que falamos quando reivindicamos justiça
contra o racismo estrutural, quando soltamos nossos cabelos e quando nos
levantamos contra o racismo. Isso deve ser estimulado no dia a dia. Somos e
fomos crianças que nunca recebemos um “você é lindo”. Passo muitas vezes nas
ruas fazendo esse exercício e as respostas são sempre surpreendentes.
Porém, não podemos
relativizar ou absolutizar as formas de poder. Há várias formas de poder, em
contingência ou em ação. E o poder contra o qual lutamos para exercermos o
poder é o poder colonial. Em nosso discurso deve estar a explicação sobre
contra qual poder nós lutamos. E nós lutamos contra o colonialismo.
Lutar contra o
colonialismo implica conhecê-lo. Por exemplo, não adianta lutar contra a “palmitagem”
sem conhecer a complexidade da formação dos relacionamentos inter-raciais, em
geral segmentados por valores de gêneros (como é o caso da solidão da mulher
negra) e de classe (a mulher negra está em estratos específicos mais pobres da
sociedade).
E, por último, lutar
contra o colonialismo é lutar contra o capitalismo. Não é possível empoderar de
verdade nosso povo numa verdade capitalista.
Estamos passando por
uma primavera necessária no regime capitalista brasileiro e mundial. É uma
primavera que, muitas vezes, se levanta contra o fascismo (nos EUA) ou contra a
barbárie neocolonial (aqui). Não se pode deixar de estimular a beleza e a
vaidade do nosso povo e nem de lutar para que os nossos sejam reconhecidos.
Porém, uma das grandes
verdades advindas de Nancy Fraser, talvez num suspiro de suas reticências mais
tardias, é de que não basta reconhecimento, é preciso redistribuição.
Na verdade é o que o
povo negro há muito diz no Brasil. Basta ver a luta de Luísa Mahin, de Dandara,
de Maria Felipa ou do Dragão do Mar.
Redistribuição é não se
limitar a este tempo. É não se limitar ao capitalismo financeiro, estrategicamente
estético. É não se limitar ao multiculturalismo liberal.
Redistribuição é lutar
contra o colonialismo e contra o capitalismo. Nascidos como irmãos na
Modernidade, não é possível pensar a América Latina, raça e etnicidade sem
pensar os dois. Não é possível pensar que o capitalismo se tornaria o grande
ator do mundo ocidental se não fosse o poder do colonialismo. O próprio Marx
credita isso em “A Origem do capital”, escrito introdutório de “O Capital” e
Enrique Dussel mostra ser essa uma razão moderna da instrumentalização da nossa
identidade. Enquanto uns crescem, outros são instrumentalizados, colonizados e
escravizados, formando-se ali uma elite colonial a serviço do poder no
sistema-mundo.
Só aqui tratamos de
várias formas de poder e é exatamente o poder que queremos. Mas não queremos o
poder para empoderar o capital, que nos relegou o exercício da escravidão,
fingindo ser moderno. Queremos o poder para sermos, antes de tudo,
anticapitalistas. É exatamente esse poder que poderá apontar saídas para uma
nação em cacos, onde a ausência de política faz crescer o fascismo e empoderar
o racismo.
Gabriel
Nascimento é professor, escritor e cientista. É autor de “O maníaco das onze e
meia” (Editora Multifoco) e “Este fingimento e outros poemas” (Editora García).
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