domingo, 25 de junho de 2017

A preocupação com o local de fala e o lócus de enunciação
Foto: Modefica


A preocupação com o lugar de fala tem sido um dos movimentos mais bruscos de nossa época. De um lado, o lugar de fala exercido como genuíno ou biológico e, de outro, o racismo, o machismo e a homofobia se travestem na pele de cordeiro dos supostos defensores dos direitos humanos, que protestam contra o lugar de fala. 

Inseri o lugar de fala aqui porque quero analisá-lo dentro de uma estrutura específica do pensamento ocidental no século XX: a linguagem. Como pressupunha Frantz Fanon, a linguagem exerce, no sistema de dominação e hegemonia, um papel mais protagonista do que se imagina. O francês do preto colonizado das Antilhas Francesas, por exemplo, era uma tentativa de se assemelhar ao francês branco europeu como forma de aceitação, o que muitas vezes levava o preto a se negar, a negar seu povo e sua linguagem.

É preciso entender isso para contextualizar o que foram as nações e línguas enquanto comunidades imaginadas no romantismo europeu. Estamos falando de um projeto moderno, cujo sistema econômico, o capitalismo, lhe sugaria o projeto fundamental e seus cumprimentos históricos, inviabilizando os significados de seu principal projeto filosófico, o liberalismo. Mesmo com toda a tentativa de reafirmação positivista, só foi possível existir projeto moderno, com suas nações e línguas como comunidades imaginadas, como nos indica o filósofo Enrique Dussel, porque nos foi roubado esse direito. 

É nesse contexto que entra um grande conceito das áreas de linguagem e que aqui desenvolveremos: enunciação. O fato de existir um projeto moderno, com construção de verdades definidas e globalizadas, nos leva à encruzilhada da linguagem. O europeu colonizador construiu enunciados que foram globalizados, com conceitos e classificações. A noção do que é desenvolvido ou não, do que é preto ou não, do que é e do que não é vêm dessas classificações e origens. No entanto, esses conceitos foram por nós herdados fora do contexto de enunciação europeu, de modo que o enunciado se repete, a enunciação é única. Esse é o grande ganho das escritas de Marx e Engels, uma vez que análises profundas estavam sendo tecidas enquanto ocorriam a enunciação. 

Entro nesse limiar para estabelecer a importância da autoridade de um lugar de onde se parte enquanto se fala. Se palavra, discurso e linguagem são encruzilhada, e principalmente epistemológica, o sujeito é um sujeito epistemologicamente contido de encruzilhada na escolha, no uso ou na negação dessa encruzilhada. É possível, portanto, que desconstruamos ou tentemos negar as conduções seculares que o racismo fez criar entre nós. No entanto, elas se reafirmam em pressuposto intimamente racista. Digo isso porque enunciado (agora como produto) está separado de enunciação, raça de racialidade e , portanto, o branco, rico e burguês se desonera da sua culpa na história para afirmar o racismo como algo externo a si e no passado. 

Se enunciado é o resultado da enunciação e enunciação é o processo que leva ao enunciado, o lugar de fala é um grande lócus de enunciação porque permite a diversas identidades, antes marginalizadas, falarem de si. É lógico que aqui não estamos tratando qualitativamente do conteúdo dessa fala, e isso podemos discutir mais adiante. Mas isso nos permite entender que essas identidades marginalizadas querem desnudar a racialização, de modo a não separar enunciado e enunciação na história, integrando raça e racialidade como construtos socioeconômicos e culturais que precisam ser significados em conjunto para serem entendidos.

Em outros termos, quanto um preto, uma mulher, um LGBT, um índio reivindicam seu lugar de fala não é porque acham que não deva ter opinião dos outros, mas que ali eles sempre foram a figura do outro, numa política de emancipacionismo em que o sujeito é tratado como oco e sem política, pronto a ser politizado e ideologizado. 

Se não se pode (e nem quero) separar enunciado de enunciação nessa produção, é preciso que haja um lugar de fala, pelo menos como ponto de partida. Ele é o próprio processo de condução na luta de classes em nossos dias. A nossa maior tentativa é, nesta quadra histórica, atrair a diversidade de sujeitos que possa interferir e debater de forma aprofundada os processos históricos que nos atravessam. 

É preciso desnudar o sujeito e entendê-lo como aquele a quem tanto a identidade foi imputada que agora ele próprio quer exercer a identidade. Nesse sentido, uma vez que o sujeito capitalista moderno europeu assim pôde produzir enunciado dentro da enunciação, não nos pode ser imputado o dever de apenas reproduzir enunciados sobre nós. Queremos produzir também. 

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3 comentários:

Unknown disse...

Há muitos anos não leio um artigo tão lúcido e envolvente. Parabéns!!

Maria Luíza Cordeiro Calcagno disse...

Tenho essa preocupação, em como abordar o que defende Bolsonaro e ao mesmo tempo limpar o ranso racista para desconstruir sua candidatura! Temos que mostrar o lado pérfido que ele defende com a conscientização social!

Maria Luíza Cordeiro Calcagno disse...

Tenho essa preocupação, em como abordar o que defende Bolsonaro e ao mesmo tempo limpar o ranso racista para desconstruir sua candidatura! Temos que mostrar o lado pérfido que ele defende com a conscientização social!

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"A raça é um signo duplo, cujo significante aponta para dois significados: opressão e resistência"

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