Precisamos falar do racismo cordial
Reprodução: UEPG
A linguista Aparecida de Jesus Ferreira tem sido uma voz contundente nos estudos das relações etnicorraciais através de sua representação no ensino-aprendizagem de língua estrangeira. Um tema que Aparecida retoma com muita força e que pretendo esboçar neste texto é o racismo cordial, usado por ela em sua pesquisa para definir a cara do nosso racismo.
O racismo cordial não é nenhum palavrão para os negros que vivemos diariamente os constrangimentos em diversos espaços. A palavra "cordial" tem uso conhecido a partir da obra do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Ferreira. Sérgio era um desses estudiosos dedicados ao entendimento do Brasil e de sua "lógica" de funcionamento. Escreveu essa que é considerada uma bíblia da sociologia brasileira, "Raízes do Brasil", três anos após a publicação de outra bíblia da sociologia brasileira, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre. Ambos os livros trazem sustentáculos funcionais para nossa leitura do que seja "cordial" e dão sustentáculo, assim, ao racismo. Gilberto Freyre, embora de um campo conservador, olha positivamente a ideia de miscigenação do povo brasileiro, tentando responder às ofensas racistas dos "estudiosos" sobre evolução racial do século XIX. A teoria elaborada por ele nega a complexidade de nossa miscigenação e negamos ao negro pobre o direito de ser negro enquanto a elite aprofundava seu sonho de elite de sangue azul europeu. Esses dois sociólogos habitam o imaginário social e acadêmico até hoje e é precisamente por isso que temos que falar sobre eles.
O "homem cordial" de Sérgio Buarque é um homem demonizado, resultado das políticas estatais das velhas elites. Como hoje já entendemos, a demonização do Estado não nos serve como referência num país onde raras vezes teve um Estado forte de fato. Aos poucos, a visão de Sérgio Buarque deixa passar a ideia de que a cultura popular está cheia desse espírito do "homem cordial", que vai se tornando o "espírito universal" do senso comum do pensamento social e racial brasileiro. Jessé de Souza chama atenção para isso no recém-lançado livro "A Tolice da inteligência brasileira", julgando que Sérgio Buarque nada fala sobre o mercado.
Se é verdade que não é possível entender classes sociais e raça sem entender nossa história, é mais verdade que não podemos passar direto sem construir/desconstruir nossas opiniões sobre o que seja ser cordial. Certa vez, ainda no mestrado, fui cobrado por um amigo do Chade, na África Central, contra a nossa "cordialidade". Segundo a tese central dele, um dos motivos do racismo contra nós negros no Brasil tem sido a nossa cordialidade com a violência. Eu me assustei com aquela afirmação que me tomou dois anos para começar a esboçar alguma resposta.
Embora eu ache que devemos superar a análise de Sérgio Buarque, que gerou esse carrossel do republicanismo de nossa democracia burguesa, as palavras daquele irmão africano do Chade me incomodaram o bastante para me exigir uma resposta.
A primeira coisa é que não é uma inverdade que exista o espírito do "homem cordial" entre nós, e ainda acrescento que ele se faz "espírito universal" na mentalidade hegeliana brasileira, essa que também chafurda a mente dos nossos mais perturbadores trotskistas. Ele só pode ser como é através do discurso e de sua formação ideológica. Antes de demonizar o "homem cordial", no entanto, é preciso entendê-lo em sua complexidade.
O homem cordial não é um mal em si. E muito menos um bem. Ele é produto das nossas elites escravocratas e quatrocentonas, e foi criado, como discurso no imaginário hegemônico e em sua formação ideológica, para dar sustentáculo, através das condições raciais (e de classe, porque raciais) aos privilégios brancos de sempre.
O homem cordial é filho das inúmeras leis abolicionistas, descumpridas aqui e acolá por todos os brancos que dominavam e dominam os meios de produção durante o século XIX. Essas leis para inglês ver foram criadas para criar o discurso dominante de um Brasil que creditava suas forças na liberdade e na evolução moderna e burguesa. Mito.
O homem cordial é ainda produto do apagamento das revoltas populares brasileiras, desde sempre. O mito da não-violência, analisado por Marilena Chauí, reforça a ideia de que esse Brasil, cordial, não é violento e violento é o outro, negro, pobre.
O racismo cordial, por sua vez, é também criação dessa elite branca escravocrata e quatrocentona. Quanto mais distante dos capitais simbólicos de classe social mais baixa, mais ele se apresenta. Talvez, e nisso eu insisto, a relação mais próxima entre classe social no Brasil precise passar didaticamente por esse ponto. Sem negar as especificidades das questões de classe social, tomando a cara dos nossos trabalhadores, em sua maioria negros e filhos da escravidão, não há questão de classe social sem se entender a questão racial. Por outro lado, quando um negro está mais próximo dos segmentos de classe média à classe média alta, o racismo fica cada vez mais sofisticado.
O preto, que sofre o racismo físico, verbal ou psicológico de forma bem direta com as humilhações diárias, na extrema pobreza, ouve as tecnologias da linguagem, uma falsa cortesia e as entrelinhas de um discurso racista. "Que legal que você fala inglês", "Como você é bonita, não é?" são frases comuns que, se usadas para agradar, muitas vezes são usadas de forma irônica.
Perceber o racismo cordial não é difícil para quem o sofre sempre. Um amigo meu doutorando que foi a uma boate no Rio Grande do Sul, numa cidade com grande quantidade de baianos trabalhando em trabalhos braçais no Porto, já chegou a ser interpelado por um jovem graduando na casa noturna, amigo de seus amigos, que lhe dizia "Bem, talvez você não consiga entender, mas...".
A tese central que eu defendo é que, no Brasil, o racismo cordial é o grande constituinte do chamado racismo epistêmico. A forma como o negro é excluído da produção de conhecimento tem a ver com a cordialidade de uma universidade conservadora que reserva privilégio para os seus pares brancos e filhos da elite.
Como o nome diz, o racismo cordial se apresenta como cordial e se nega como racismo. Ele é o racismo da pessoa que subentende o seu "nível intelectual". É o racismo de uma colega professora de inglês que, num evento internacional em língua inglesa, me perguntou se eu ia apresentar o trabalho em inglês, duvidando de minha capacidade de me comunicar no idioma. O racismo cordial é ainda o racismo daqueles e daquelas são cordiais e legais com os negros, mas não arredam o pé do seus privilégios históricos.
A segunda tese que defendo e que defenderei nos próximos textos é que o racismo cordial é o grande constituinte do mito da democracia racial que, para se manter como tal, precisa da colonialidade do saber.
Essa tese tem a ver com a produção de uma democracia racial que, para se construir do jeito que é, precisa de um mito. O brasileiro, visto como "cordial", gentil e receptivo, não concebe a violência. Porém, o Estado que violenta, o capital que violenta, não são entendidos como aqueles que verdadeiramente violentam. O mesmo brasileiro que é chamado de "cordial" e receptivo, aceitando a tese de Sérgio Buarque ou a de Gilberto Freyre, é o que é criminalizado se não se domestica aos moldes do capital branca e colonizador e, portanto, chamado de "violento". Esse é o traficante, o morador de rua, a travesti e o militante.
Por último, gostaria de defender a preocupação e emergência de tratar do racismo cordial nos dias atuais. A ausência de preocupação sobre a representação dos negros num livro didático ou nas aulas de artes plásticas nos leva a uma preocupação central de que, com o avanço dos direitos sociais no Brasil, com o combate à fome nos governos de Lula e Dilma, a chegada de milhões de estudantes, sendo os primeiros de sua geração, na universidade, o acesso ao consumo, entre outros, os negros e negras nos espaços de poder passam a ter algumas outras preocupações de combate. Uma delas é a concentração da produção de saber.
Ao dizer que precisamos falar do racismo cordial, penso que precisamos compreender a suposta "cordialidade" do povo brasileiro, cuja tese, para o bem, foi criada para difundir uma visão automática de miscigenação, negando as complexidades e as lutas do povo negro brasileiro, e, por outro lado, ajuda a difundir uma visão de "povo besta", "fraco", "desorganizado", "trouxa", "inferior".
Não só devemos começar a desconstruir o "brasileiro cordial" para desconstruir o racismo cordial, como devemos entender as diversas facetas do povo brasileiro e da cultura popular do nosso povo para a contraposição desse discurso falacioso do pensamento social e racial brasileiro. Só assim podemos produzir nossa própria narrativa.
3 comentários:
Bom artigo. Parabéns pela importante contribuição ao debate Gabriel.
Gabriel ótimo texto. Obrigada pela citação. Abraços
Excelentes provocações. Muito bom seu artigo. Obrigado por partilhar conosco essas ideias.
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