sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Precisamos falar do racismo cordial
Reprodução: UEPG

A linguista Aparecida de Jesus Ferreira tem sido uma voz contundente nos estudos das relações etnicorraciais através de sua representação no ensino-aprendizagem de língua estrangeira. Um tema que Aparecida retoma com muita força e que pretendo esboçar neste texto é o racismo cordial, usado por ela em sua pesquisa para definir a cara do nosso racismo.


O racismo cordial não é nenhum palavrão para os negros que vivemos diariamente os constrangimentos em diversos espaços. A palavra "cordial" tem uso conhecido a partir da obra do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Ferreira. Sérgio era um desses estudiosos dedicados ao entendimento do Brasil e de sua "lógica" de funcionamento. Escreveu essa que é considerada uma bíblia da sociologia brasileira, "Raízes do Brasil", três anos após a publicação de outra bíblia da sociologia brasileira, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre. Ambos os livros trazem sustentáculos funcionais para nossa leitura do que seja "cordial" e dão sustentáculo, assim, ao racismo. Gilberto Freyre, embora de um campo conservador, olha positivamente a ideia de miscigenação do povo brasileiro, tentando responder às ofensas racistas dos "estudiosos" sobre evolução racial do século XIX. A teoria elaborada por ele nega a complexidade de nossa miscigenação e negamos ao negro pobre o direito de ser negro enquanto a elite aprofundava seu sonho de elite de sangue azul europeu. Esses dois sociólogos habitam o imaginário social e acadêmico até hoje e é precisamente por isso que temos que falar sobre eles.

O "homem cordial" de Sérgio Buarque é um homem demonizado, resultado das políticas estatais das velhas elites. Como hoje já entendemos, a demonização do Estado não nos serve como referência num país onde raras vezes teve um Estado forte de fato. Aos poucos, a visão de Sérgio Buarque deixa passar a ideia de que a cultura popular está cheia desse espírito do "homem cordial", que vai se tornando o "espírito universal" do senso comum do pensamento social e racial brasileiro. Jessé de Souza chama atenção para isso no recém-lançado livro "A Tolice da inteligência brasileira", julgando que Sérgio Buarque nada fala sobre o mercado.

Se é verdade que não é possível entender classes sociais e raça sem entender nossa história, é mais verdade que não podemos passar direto sem construir/desconstruir nossas opiniões sobre o que seja ser cordial. Certa vez, ainda no mestrado, fui cobrado por um amigo do Chade, na África Central, contra a nossa "cordialidade". Segundo a tese central dele, um dos motivos do racismo contra nós negros no Brasil tem sido a nossa cordialidade com a violência. Eu me assustei com aquela afirmação que me tomou dois anos para começar a esboçar alguma resposta.

Embora eu ache que devemos superar a análise de Sérgio Buarque, que gerou esse carrossel do republicanismo de nossa democracia burguesa, as palavras daquele irmão africano do Chade me incomodaram o bastante para me exigir uma resposta.

A primeira coisa é que não é uma inverdade que exista o espírito do "homem cordial" entre nós, e ainda acrescento que ele se faz "espírito universal" na mentalidade hegeliana brasileira, essa que também chafurda a mente dos nossos mais perturbadores trotskistas. Ele só pode ser como é através do discurso e de sua formação ideológica. Antes de demonizar o "homem cordial", no entanto, é preciso entendê-lo em sua complexidade.

O homem cordial não é um mal em si. E muito menos um bem. Ele é produto das nossas elites escravocratas e quatrocentonas, e foi criado, como discurso no imaginário hegemônico e em sua formação ideológica, para dar sustentáculo, através das condições raciais (e de classe, porque raciais) aos privilégios brancos de sempre.

O homem cordial é filho das inúmeras leis abolicionistas, descumpridas aqui e acolá por todos os brancos que dominavam e dominam os meios de produção durante o século XIX. Essas leis para inglês ver foram criadas para criar o discurso dominante de um Brasil que creditava suas forças na liberdade e na evolução moderna e burguesa. Mito.

O homem cordial é ainda produto do apagamento das revoltas populares brasileiras, desde sempre. O mito da não-violência, analisado por Marilena Chauí, reforça a ideia de que esse Brasil, cordial, não é violento e violento é o outro, negro, pobre.

O racismo cordial, por sua vez, é também criação dessa elite branca escravocrata e quatrocentona. Quanto mais distante dos capitais simbólicos de classe social mais baixa, mais ele se apresenta. Talvez, e nisso eu insisto, a relação mais próxima entre classe social no Brasil precise passar didaticamente por esse ponto. Sem negar as especificidades das questões de classe social, tomando a cara dos nossos trabalhadores, em sua maioria negros e filhos da escravidão, não há questão de classe social sem se entender a questão racial. Por outro lado, quando um negro está mais próximo dos segmentos de classe média à classe média alta, o racismo fica cada vez mais sofisticado.

O preto, que sofre o racismo físico, verbal ou psicológico de forma bem direta com as humilhações diárias, na extrema pobreza, ouve as tecnologias da linguagem, uma falsa cortesia e as entrelinhas de um discurso racista. "Que legal que você fala inglês", "Como você é bonita, não é?" são frases comuns que, se usadas para agradar, muitas vezes são usadas de forma irônica.

Perceber o racismo cordial não é difícil para quem o sofre sempre. Um amigo meu doutorando que foi a uma boate no Rio Grande do Sul, numa cidade com grande quantidade de baianos trabalhando em trabalhos braçais no Porto, já chegou a ser interpelado por um jovem graduando na casa noturna, amigo de seus amigos, que lhe dizia "Bem, talvez você não consiga entender, mas...".


A tese central que eu defendo é que, no Brasil, o racismo cordial é o grande constituinte do chamado racismo epistêmico. A forma como o negro é excluído da produção de conhecimento tem a ver com a cordialidade de uma universidade conservadora que reserva privilégio para os seus pares brancos e filhos da elite.

Como o nome diz, o racismo cordial se apresenta como cordial e se nega como racismo. Ele é o racismo da pessoa que subentende o seu "nível intelectual". É o racismo de uma colega professora de inglês que, num evento internacional em língua inglesa, me perguntou se eu ia apresentar o trabalho em inglês, duvidando de minha capacidade de me comunicar no idioma. O racismo cordial é ainda o racismo daqueles e daquelas são cordiais e legais com os negros, mas não arredam o pé do seus privilégios históricos.

A segunda tese que defendo e que defenderei nos próximos textos é que o racismo cordial é o grande constituinte do mito da democracia racial que, para se manter como tal, precisa da colonialidade do saber.

Essa tese tem a ver com a produção de uma democracia racial que, para se construir do jeito que é, precisa de um mito. O brasileiro, visto como "cordial", gentil e receptivo, não concebe a violência. Porém, o Estado que violenta, o capital que violenta, não são entendidos como aqueles que verdadeiramente violentam. O mesmo brasileiro que é chamado de "cordial" e receptivo, aceitando a tese de Sérgio Buarque ou a de Gilberto Freyre, é o que é criminalizado se não se domestica aos moldes do capital branca e colonizador e, portanto, chamado de "violento". Esse é o traficante, o morador de rua, a travesti e o militante.

Por último, gostaria de defender a preocupação e emergência de tratar do racismo cordial nos dias atuais. A ausência de preocupação sobre a representação dos negros num livro didático ou nas aulas de artes plásticas nos leva a uma preocupação central de que, com o avanço dos direitos sociais no Brasil, com o combate à fome nos governos de Lula e Dilma, a chegada de milhões de estudantes, sendo os primeiros de sua geração, na universidade, o acesso ao consumo, entre outros, os negros e negras nos espaços de poder passam a ter algumas outras preocupações de combate. Uma delas é a concentração da produção de saber.

Ao dizer que precisamos falar do racismo cordial, penso que precisamos compreender a suposta "cordialidade" do povo brasileiro, cuja tese, para o bem, foi criada para difundir uma visão automática de miscigenação, negando as complexidades e as lutas do povo negro brasileiro, e, por outro lado, ajuda a difundir uma visão de "povo besta", "fraco", "desorganizado", "trouxa", "inferior".

Não só devemos começar a desconstruir o "brasileiro cordial" para desconstruir o racismo cordial, como devemos entender as diversas facetas do povo brasileiro e da cultura popular do nosso povo para a contraposição desse discurso falacioso do pensamento social e racial brasileiro. Só assim podemos produzir nossa própria narrativa.

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3 comentários:

Adilson Santos disse...

Bom artigo. Parabéns pela importante contribuição ao debate Gabriel.

Aparecida de Jesus Ferreira disse...

Gabriel ótimo texto. Obrigada pela citação. Abraços

Unknown disse...

Excelentes provocações. Muito bom seu artigo. Obrigado por partilhar conosco essas ideias.

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"A raça é um signo duplo, cujo significante aponta para dois significados: opressão e resistência"

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