GABRIEL NASCIMENTO

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Gabriel Nascimento

Quem sou eu?

Professor desde sempre, poeta às vezes, músico de família. Sobrevivente da fome, seguido por seguranças em lojas de elite, descobri na universidade, esse paradoxo institucional conservador, um lugar para resistir. Desde 2009 eu busco fugir da fome, como uma marca que me persegue. Desde 2018 eu tento fazer com que alunos e orientandos negros enxerguem como passado os quase 4 séculos de escravização negreira.

Escrevo compulsivamente. Minha escrita desorganizada se emancipa à medida que a cobram emancipada. Sou filho de dona Sônia e oriundo de Banco Central. Professor de inglês, sou audodidata desde os 8 ou 9 anos. O mundo me ensinou a ler com lentes que não mais largo. Meu ori é de jagun e a guerra é meu lugar


Formação
Universidade de São Paulo

Doutorado em andamento (Estudos linguísticos)

Universidade de Brasília

Mestrado em Linguística Aplicada


Atuação
Professor assistente

Universidade Federal do Sul da Bahia

Visiting Scholar (2019)

University of Pennsylvania


Principais publicações
NASCIMENTO, G. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento Editorial, 2019.

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NASCIMENTO, G. Ethnicity and race in English language activities at a university in Bahia. Cadernos de Pesquisa, v. 49, n. 173, 2019.

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NASCIMENTO, Gabriel. Os brancos saberão resistir. Revista ABPN, v. 11, p. 331-347, 2019.

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NASCIMENTO, Gabriel. Raça e resistência ao racismo em atividades de língua inglesa no Sul da Bahia. Revista X, v. 14, p. 121-137, 2019.

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NASCIMENTO, Gabriel. O negro na ciência brasileira contemporânea através de duas amostras. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 18, p. 110-123, 2018.

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TRABALHOS

O tráfico também empodera o povo negro

Foto: Beto Junior/Correio



Precisamos falar de poder. Sério. Seríssimo. E, como sempre defendo o empoderamento do meu povo, o povo negro, hoje quero falar um pouco das diversas construções de sentido do termo “empoderamento”.
Assim como tenho falado que o termo “local de fala” pode ser entendido através do lócus de enunciação do sujeito, o mesmo se dá com o termo “empoderamento”.
Empoderamento é o ato histórico de conquista do poder. No entanto, não há um só poder. Como bem disse Foucault, o poder está em toda parte e traduzido de diversas formas. Porém, é na interpretação profunda que Achille Mbembe faz da razão negra que podemos entender que poder é signo e, como signo, pode se dar sob o próprio aparelhamento da branquitude.  
Da branquitude e do capitalismo.
Num sistema capitalista não só é necessário ser antirracista, é preciso ser anticapitalista.
Iniciei este texto com um título polêmico que me retorna ao lugar de onde vim. Nele, muitas vezes, o tráfico é a única forma de empoderamento do povo negro. Longe de romantizar esse lugar (que não é dominado pelos negros daquele lugar, mas por senhores de escravos que, historicamente, são flagrados dominando o mercado de drogas na América Latina e permanecem impunes), o tráfico não pode ser romantizado. É sobrevivência e, nesse sentido, espaço de contingência. Na cabeça de um jovem de 15 anos, esquecido pelo aparato estatal e distante da escola e do trabalho, de um trabalho decente, a metralhadora é, literalmente, a sua arma mais próxima. A forma de exercer poder ali mais próxima é aquela.
 Nem o tráfico pode ser romantizado e nem o traficante. Nessas idas e vindas, conversando com um irmão desses que vive de “bicos” no tráfico, ele me dizia, a despeito do poder: “são eles que me dá as coisa”, sem completar que não tinha como virar as costas para eles.
É uma grande e incorrigível rede de empoderamento. Mas empoderamento via capital. É lógico que esse empoderamento não é o mesmo que falamos quando reivindicamos justiça contra o racismo estrutural, quando soltamos nossos cabelos e quando nos levantamos contra o racismo. Isso deve ser estimulado no dia a dia. Somos e fomos crianças que nunca recebemos um “você é lindo”. Passo muitas vezes nas ruas fazendo esse exercício e as respostas são sempre surpreendentes.
Porém, não podemos relativizar ou absolutizar as formas de poder. Há várias formas de poder, em contingência ou em ação. E o poder contra o qual lutamos para exercermos o poder é o poder colonial. Em nosso discurso deve estar a explicação sobre contra qual poder nós lutamos. E nós lutamos contra o colonialismo.
Lutar contra o colonialismo implica conhecê-lo. Por exemplo, não adianta lutar contra a “palmitagem” sem conhecer a complexidade da formação dos relacionamentos inter-raciais, em geral segmentados por valores de gêneros (como é o caso da solidão da mulher negra) e de classe (a mulher negra está em estratos específicos mais pobres da sociedade).
E, por último, lutar contra o colonialismo é lutar contra o capitalismo. Não é possível empoderar de verdade nosso povo numa verdade capitalista.
Estamos passando por uma primavera necessária no regime capitalista brasileiro e mundial. É uma primavera que, muitas vezes, se levanta contra o fascismo (nos EUA) ou contra a barbárie neocolonial (aqui). Não se pode deixar de estimular a beleza e a vaidade do nosso povo e nem de lutar para que os nossos sejam reconhecidos.
Porém, uma das grandes verdades advindas de Nancy Fraser, talvez num suspiro de suas reticências mais tardias, é de que não basta reconhecimento, é preciso redistribuição.
Na verdade é o que o povo negro há muito diz no Brasil. Basta ver a luta de Luísa Mahin, de Dandara, de Maria Felipa ou do Dragão do Mar.
Redistribuição é não se limitar a este tempo. É não se limitar ao capitalismo financeiro, estrategicamente estético. É não se limitar ao multiculturalismo liberal.
Redistribuição é lutar contra o colonialismo e contra o capitalismo. Nascidos como irmãos na Modernidade, não é possível pensar a América Latina, raça e etnicidade sem pensar os dois. Não é possível pensar que o capitalismo se tornaria o grande ator do mundo ocidental se não fosse o poder do colonialismo. O próprio Marx credita isso em “A Origem do capital”, escrito introdutório de “O Capital” e Enrique Dussel mostra ser essa uma razão moderna da instrumentalização da nossa identidade. Enquanto uns crescem, outros são instrumentalizados, colonizados e escravizados, formando-se ali uma elite colonial a serviço do poder no sistema-mundo.
Só aqui tratamos de várias formas de poder e é exatamente o poder que queremos. Mas não queremos o poder para empoderar o capital, que nos relegou o exercício da escravidão, fingindo ser moderno. Queremos o poder para sermos, antes de tudo, anticapitalistas. É exatamente esse poder que poderá apontar saídas para uma nação em cacos, onde a ausência de política faz crescer o fascismo e empoderar o racismo.


Gabriel Nascimento é professor, escritor e cientista. É autor de “O maníaco das onze e meia” (Editora Multifoco) e “Este fingimento e outros poemas” (Editora García). 

"Eu também já fui branco": de como a clínica do sujeito negro afeta sua vida



Uma das coisas mais extraordinárias que se pode tirar da obra do filósofo camaronês Achille Mbembe é a ácida crítica que ele faz da chamada clínica do sujeito. Para além de suas críticas à ingenuidade da autodeterminação, tanto advindas das vozes pan-africanistas quanto de demais vozes, a noção de sujeito em Mbembe, especialmente em Crítica da Razão Negra merece especial destaque.


Não quero aqui nem de longe resumir o seu pensamento que, além de fundamental, traz peculiaridades que, só lendo a sua obra, podemos descobrir.

Negro é um nome que me foi dado por alguém, inicia sua perfeita arguição o filósofo. É preciso, portanto, ter clareza de que, a reação aos efeitos do racismo, que nomeia as identidades e as posiciona na hierarquia racial e de classe, pode vir em negativa da identidade ou em autoafirmação (que aqui não se confunde com a crítica do filósofo à autodeterminação).

Negro é uma inscrição, portanto, na estrutura do discurso ocidental, no macro e micropoder, na estruturação das grandes narrativas. Não se pode negá-lo ou afirmá-lo, sem lembrar quem o nomeou estruturalmente, e para que ele foi nomeado.

A identidade não é só um objeto de reivindicação do sujeito, como a crítica culturalista ingênua tenta fazer há décadas. A identidade, sobretudo em sua inscrição no capitalismo, como mais importante sistema econômico ocidental, é muito mais uma imposição ao sujeito que, ao tê-la imposta à sua personalidade, e ao ser a identidade a personalidade inseparável do sujeito, o próprio sujeito muitas vezes não consegue fazer uma separação crítica dela nem em reflexão.

É uma discussão difícil porque merece várias encruzilhadas epistemológicas. Uma delas, é claro, vem sendo debatida pelo movimento negro, que é a difícil relação entre dois extremos: a autoafirmação etnicorracial e a afroconveniência. Isso porque o sujeito que se autoafirma, muitas vezes, só o faz porque, muitas vezes mesmo não sendo negro, tem interesses muito definidos na garantia de direitos dos negros e negras.

É uma dimensão difícil porque o Negro, a quem essa identidade foi imposta na estrutura racial e de classes brasileira, através do chicote e da escravidão, na maioria das vezes se negou. Essa clínica do sujeito que "também já foi branco", agora se autoafirma com muita dificuldade.

Os direitos ajudaram muito nessa clínica.

É preciso, entretanto, recorrer ao filósofo Jacques Derrida quanto ao sentido da palavra negro, que teve o sentido originário sempre suplementado. A inscrição do negro de forma biológica deu lugar a um negro de direitos, muitas vezes usurpado de seus direitos pelo próprio privilégio branco que, ao enxergar qualquer brecha, tenta roubar-lhe de seu lugar. Nesse caso, uma suplementação de sentido na clínica muito parecida com uma farmácia que adoece o sujeito, para fingir curá-lo.

O racismo não pode me fazer de doente para me curar. Os dois sentidos do negro  são sempre usados pela branquitude, e esse é o sentido mais caro de construção da minha racialidade. Ela se afirma mais em resistência do que em essência.

Por isso, a noção de clínica do sujeito é tão importante em Mbembe. Isso porque ele entende que a ação do colonizado é sua maior arma emancipadora. A nossa racialidade negra está nessa grande luta do capitalismo, usada como base na divisão do trabalho, provida aqui e acolá originariamente no colonialismo e na condição servil dos negros e negras, e agora suplementada pela usurpação dos direitos e  criminalização e morte aos nossos corpos.


Para ver mais: MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

A preocupação com o local de fala e o lócus de enunciação

Foto: Modefica


A preocupação com o lugar de fala tem sido um dos movimentos mais bruscos de nossa época. De um lado, o lugar de fala exercido como genuíno ou biológico e, de outro, o racismo, o machismo e a homofobia se travestem na pele de cordeiro dos supostos defensores dos direitos humanos, que protestam contra o lugar de fala. 

Inseri o lugar de fala aqui porque quero analisá-lo dentro de uma estrutura específica do pensamento ocidental no século XX: a linguagem. Como pressupunha Frantz Fanon, a linguagem exerce, no sistema de dominação e hegemonia, um papel mais protagonista do que se imagina. O francês do preto colonizado das Antilhas Francesas, por exemplo, era uma tentativa de se assemelhar ao francês branco europeu como forma de aceitação, o que muitas vezes levava o preto a se negar, a negar seu povo e sua linguagem.

É preciso entender isso para contextualizar o que foram as nações e línguas enquanto comunidades imaginadas no romantismo europeu. Estamos falando de um projeto moderno, cujo sistema econômico, o capitalismo, lhe sugaria o projeto fundamental e seus cumprimentos históricos, inviabilizando os significados de seu principal projeto filosófico, o liberalismo. Mesmo com toda a tentativa de reafirmação positivista, só foi possível existir projeto moderno, com suas nações e línguas como comunidades imaginadas, como nos indica o filósofo Enrique Dussel, porque nos foi roubado esse direito. 

É nesse contexto que entra um grande conceito das áreas de linguagem e que aqui desenvolveremos: enunciação. O fato de existir um projeto moderno, com construção de verdades definidas e globalizadas, nos leva à encruzilhada da linguagem. O europeu colonizador construiu enunciados que foram globalizados, com conceitos e classificações. A noção do que é desenvolvido ou não, do que é preto ou não, do que é e do que não é vêm dessas classificações e origens. No entanto, esses conceitos foram por nós herdados fora do contexto de enunciação europeu, de modo que o enunciado se repete, a enunciação é única. Esse é o grande ganho das escritas de Marx e Engels, uma vez que análises profundas estavam sendo tecidas enquanto ocorriam a enunciação. 

Entro nesse limiar para estabelecer a importância da autoridade de um lugar de onde se parte enquanto se fala. Se palavra, discurso e linguagem são encruzilhada, e principalmente epistemológica, o sujeito é um sujeito epistemologicamente contido de encruzilhada na escolha, no uso ou na negação dessa encruzilhada. É possível, portanto, que desconstruamos ou tentemos negar as conduções seculares que o racismo fez criar entre nós. No entanto, elas se reafirmam em pressuposto intimamente racista. Digo isso porque enunciado (agora como produto) está separado de enunciação, raça de racialidade e , portanto, o branco, rico e burguês se desonera da sua culpa na história para afirmar o racismo como algo externo a si e no passado. 

Se enunciado é o resultado da enunciação e enunciação é o processo que leva ao enunciado, o lugar de fala é um grande lócus de enunciação porque permite a diversas identidades, antes marginalizadas, falarem de si. É lógico que aqui não estamos tratando qualitativamente do conteúdo dessa fala, e isso podemos discutir mais adiante. Mas isso nos permite entender que essas identidades marginalizadas querem desnudar a racialização, de modo a não separar enunciado e enunciação na história, integrando raça e racialidade como construtos socioeconômicos e culturais que precisam ser significados em conjunto para serem entendidos.

Em outros termos, quanto um preto, uma mulher, um LGBT, um índio reivindicam seu lugar de fala não é porque acham que não deva ter opinião dos outros, mas que ali eles sempre foram a figura do outro, numa política de emancipacionismo em que o sujeito é tratado como oco e sem política, pronto a ser politizado e ideologizado. 

Se não se pode (e nem quero) separar enunciado de enunciação nessa produção, é preciso que haja um lugar de fala, pelo menos como ponto de partida. Ele é o próprio processo de condução na luta de classes em nossos dias. A nossa maior tentativa é, nesta quadra histórica, atrair a diversidade de sujeitos que possa interferir e debater de forma aprofundada os processos históricos que nos atravessam. 

É preciso desnudar o sujeito e entendê-lo como aquele a quem tanto a identidade foi imputada que agora ele próprio quer exercer a identidade. Nesse sentido, uma vez que o sujeito capitalista moderno europeu assim pôde produzir enunciado dentro da enunciação, não nos pode ser imputado o dever de apenas reproduzir enunciados sobre nós. Queremos produzir também. 

Os brancos deviam falar entre si sobre racismo


Vejo corriqueiramente e atualmente muito afã das pessoas em geral querendo debater raça. Tenho visto principalmente pessoas brancas que, ou questionam o lugar de fala de negros e negras, ou sentem uma ansiedade imensa de falar de raça/racismo.

A Internet fez surgir uma legião deles. Isso não seria ruim se algumas dessas pessoas não quisessem, de maneira tão intensa e fortuita, falar de raça e racismo para e pelos os negros. Mas não somos nós que estamos separados no discurso ou separamos raça e racialidade de sujeito. Isso em geral é um produto do privilégio branco.

Explico: a construção da racialidade é um processo histórico. No entanto, com o moderno aparelho racista se modernizando e se atualizando, a branquitude tem negado, por meio de vozes oficiais e extraoficiais, a sua participação nos regimes cruéis como o colonialismo e a escravidão.

Essa negativa tem a ver como a possibilidade do branco não se sentir culpado por um sistema que teve, muitas vezes, um ancestral seu como cúmplice. É preciso ainda que o branco saiba que ele pode não ser culpado diretamente por esses regimes, mas a branquitude o é.

Reconhecer isso é não separar racialidade de sujeito. E, em geral, essas pessoas brancas que querem tanto falar sobre raça e racismo não separam. E sabe qual o elemento central desse erro crasso? O elemento central é que elas querem falar para e pelos negros.

Isso significa que nós não nos incomodamos com pessoas brancas que falam sobre raça e racismo. No entanto, o uso da hierarquia social e racial para falar sobre raça e racismo para e pelos negros é um dispositivo que identifica rapidamente esse comportamento epistêmico racista.

No entanto, querer falar para os negros (sobre raça/racismo) revela uma característica epistêmica muito comum do racismo à brasileira: o epistemicídio. O epistemicídio é o apagamento da voz do outro através de uma dada hierarquização social e racial.

Nós negros estamos historicamente acostumados a ver brancos falando para nós com uma dada autoridade racial, ainda que simbólica. "Racismo é coisa da sua cabeça", "É só não discutir que ele não existe", "Vocês são os próprios racistas", "Todos somos humanos e só existe a raça humana" são algumas das pérolas que ouvimos historicamente. Ou seja, não é novidade que os brancos falem para nós de raça/racismo. A novidade agora é que alguns, disfarçados de alguma espécime de progressismo conservador, se entendam no direito de dizer o que é e o que não é racismo. Trata-se da relativização conceitual que essa atual fase do pensamento ocidental, arrefecida pelas mudanças estruturantes no capitalismo, tem trazido à baila. Usa-se desse dispositivo, portanto, para apagar e minimizar os problemas do outro.

Na linguagem e pesquisa do antropólogo Kabengele Munanga, sobre o racismo enquanto crime perfeito, enquanto se autointitulam e se autorizam para falar sobre raça e racismo, essas pessoas brancas se negam enquanto racistas. Ou seja, trata-se de mais uma faceta do racismo à brasileira em sua fase cordial. É a necessidade de negar o racismo ou relativizá-lo que o torna tão forte entre nós. Em outras palavras, o posto não nega o pressuposto.  Quando você diz "Você é preto, mas é inteligente" você pressupõe que pretos não são inteligentes. No entanto se você diz para uma mulher negra "que mulher negra bonita" e isso não é comum dizer "que mulher branca bonita" você produz mais um pressuposto que não é negado pelo posto, ainda que você se explique e diga não. Quanto mais explica, mais reforça o pressuposto. Explico: quando você diz "não, eu não estou dizendo que negras não são bonitas", o núcleo que dá sentido ao seu enunciado é "negras não são bonitas" e é esse o pressuposto construído desde o início. Parece um rua sem saída? É só você ver como é racialidade que constrói esse repertório linguístico.

Como dizia o filósofo Achille Mbembe, é preciso que a gente nunca separe raça de racialidade em nossa crítica negra. Por isso, é preciso lembrar às pessoas brancas que elas têm os dois, raça e racialidade.

A raça é a construção sociocultural, histórica e política distribuída através dos mecanismos de estratificação social e racial que  se impõem ao sujeito, tanto simbólico quanto concretamente, e permitem que ele se reivindique e se entenda  nesse tipo de mecanismo para existir. Trata-se de um condicionante que atua num sistema como o capitalista de modo a lhe subsumir e lhe reduzir a existência, seja através da manutenção de forças produtivas adequadas a um status quo escravista e colonialista ou do próprio discurso sistêmico sobre o mundo do trabalho.

A racialidade é a ilocução do sujeito, a próprio espaço de atuação desse sujeito através do condicionante racial. Nós negros, em geral, não conseguimos separar racialidade e raça porque esses dois atuam em conjunto nas formas que somos discriminados, reduzidos e explorados.

Os brancos não. Desde o fim da escravidão e com o crescimento e valoração do discurso dos direitos humanos de forma secularizada no mundo ocidental, existe uma investida no pensamento hegemônico de separar raça e racialidade. Ou seja, o sujeito nega que a branquitude seja culpada e cúmplice das mazelas que ainda hoje dificultam e impossibilitam a vida do povo negro e, ao negar isso, o sujeito se isenta de responsabilidade na discussão sobre racismo.

A isenção também é dada quando essas pessoas querem falar de racismo pelos negros. Essa é uma característica mais comum do racismo epistêmico no Brasil. A Academia brasileira é quase um palácio celestial onde ocorre esse tipo de acontecimento. Nela, não raramente, as pessoas não fazem nem mea culpa para se perceberem dentro de uma racialidade que envolve o privilégio branco. Elas simplesmente falam sobre aquilo e acabou.

Não temos absolutamente nada contra pessoas brancas que pesquisam sobre racismo. Isso não é o problema. O problema é quando a pessoa não percebe o lugar de onde fala. A feminista, de origem panamenha, Linda Alcoff critica duramente esse tipo de atitude, e revela que, para as pessoas brancas, elas não estão investidas numa racialidade ao falar de raça. Elas se enxergam (ou muitas dessas fingem enxergar) que estão num espaço de neutralidade.

Por isso, é preciso que as pessoas brancas conversem (e muito) entre si sobre raça e racialidade. Nos jantares, nos bares dos centros urbanos, nas festas de formatura. Que essas pessoas que querem lutar tanto pelos avanços sociais não tenham medo de conversar nesses contextos, para que outras pessoas brancas possam também debater mais sua racialidade.

É preciso, antes de tudo, desnudar a racialidade. E isso é pauta para as pessoas brancas que querem falar tanto sobre racismo. Elas são e sempre serão bem-vindas ao debate, contanto que façam o dever de casa.

Negro de pele (mais) clara é diferente de branco afroconveniente




Um povo que tem direito à história do seu povo é um povo que se autoafirma constantemente. No Brasil, e até chegarmos à mais recente legislação, a autodeclaração foi um fortuito e grande dispositivo para dar visibilidade ao nosso povo, mas também permitiu a deixa da afroconveniência de alguns.

Fico extremamente preocupado quando leio que "todo mundo está querendo ser negro", ou que "agora é bom ser negro". Isso revela que as máscaras do racismo se modificam e que elas não são menos perigosas por causa disso.

A autodeclaração por si só não criou a afroconveniência. Quem a criou foram os privilegiados de sempre que não aceitam perder os privilégios. A implementação de cotas nas universidades, começando pelas estaduais, gerou um pânico em alguns setores brancos da sociedade brasileira e pessoas brancas de diversas camadas socioeconômicas acharam um inimigo comum: o acesso ao ensino superior para gerações inteiras que seriam as primeiras de suas famílias a entrar numa universidade. Foi o meu caso.

Por mais incrível que pareça, a autodeclaração nos deu muita paz em tempos de mudança assertiva do pensamento humano no fim do século XX. Milhões de pessoas que acabavam se declarando como pardas, mulatas, morenas etc. começavam a se declarar negras e essa era uma luta que tinha começado lá atrás na cultura e na história, e não era somente produto da pura legislação. Era produto de muita luta e suor, e isso não se joga na lata do lixo da história por hipótese alguma.

No fim, o branco se deu conta de que era possível assumir o discurso do genótipo para dizer que, como na história de alguma geração de sua família houve algum negro por lá,  portanto ele também podia se assumir negro. À tona está aí retorno em grande estilo do discurso quase-pronto biologicista que foi combatido no século XX.

A autodeclaração, dispositivo de justiça social, agora se tornaria uma máquina de fraude política e histórica. Essa máquina de fraude já vem sendo tema do imenso debate dos demais setores do movimento negro.

No entanto, com o debate sobre "colorismo" (Abra aqui e saiba mais sobre "colorismo"), sobram algumas dúvidas sobre a possibilidade de negros com pele mais clara estarem fraudando o sistema de ações afirmativas tanto nas universidades quanto nos concursos públicos federais. Não deveriam sobrar dúvidas, mas argumento aqui em favor da diferença fundamental entre negro de pele clara e branco afroconveniente.

Não jogando um papel central na discussão do "colorismo" no Brasil (afinal o nosso racismo não é por genótipo, mas não é só essencial e genuinamente por fenótipo, mas principalmente por causa dele), a maioria das fraudes nas ações afirmativas vêm de brancos, de pele clara e traços brancos, de classe média, que não sofreram racismo nenhum dia de suas vidas e ainda assim querem concorrer por meio da reserva de vagas para negros.

Uma professora universitária, num congresso que fui recentemente, alertava que jovens brancos de classe média, inclusive, raspam suas cabeças e permitem à pele ficar com traços mais "encardidos" para, supostamente, se passarem por negros. Isso nada tem a ver com o negro de pele mais clara que, por vezes, ao cativar todos os outros traços da negritude, estão integrados no imenso sistema de exclusão do racismo estrutural.

Como o racismo no Brasil tem uma relação intrínseca com classe social, a maioria dos negros de pele mais clara está na periferia e não nos bairros de classe média. Esses não são, nem de longe, aqueles que estão querendo fraudar as cotas na universidade, no concurso público ou no Itamaraty.

Por outro lado, os excelentes argumentos sobre o "colorismo" no Brasil não podem esquecer que o fenótipo não é apenas biológico, mas político e histórico. O corpo só é o corpo porque existe político e historicamente para ser o corpo, dentro de uma dada materialidade histórica, temporal e espacial. Assim sendo, o fenótipo não é uma categoria apenas "biológica" e "genética". Aliás, lutar contra o racismo no colonialismo precisa ser uma tarefa que exige analisar a história dos corpos negros e como eles estão sendo visto há séculos. É necessária uma genealogia profunda da questão etnicorracial no Brasil, o que não foi enfrentado até agora como algo sério a ser feito.

É óbvio que o racismo se dá em hierarquias, e essas hierarquias interpõem silenciamentos e opressões cada vez maiores para quem tem mais traços de distinção do branco, europeu, branco. Entretanto, essas distinções são signos cada vez mais presentes e representáveis nas instâncias do Estado e entre nós, negros e negras, sem consciência. É o caso do negro de pele clara que alisa seu cabelo para se distinguir do seu igual e acha que passa por branco nos mais diversos lugares.

No entanto, esses traços de diferenciação não importam tanto para as elites brancas. Para as elites brancas, quatrocentonas, rentistas e aristocráticas, o preto, de pele clara ou escura, sempre será um preto.

Portanto, enxergando as hierarquias que o racismo impõe, é preciso não se confundir entre o negro de pele (mais) clara e o branco afroconveniente. Ter uma amiga negra chamada de "branca" por ter a pele (mais) clara não ajuda na luta contra o racismo porque o inimigo de verdade está lá fora e nós entre nós saberemos sempre nos resolver, a nosso tempo e modo histórico, no que couber, e quando couber. Por enquanto, o inimigo é o fantasma do colonialismo. Não nos confundamos nem nos separemos.

Precisamos falar do racismo cordial

Reprodução: UEPG

A linguista Aparecida de Jesus Ferreira tem sido uma voz contundente nos estudos das relações etnicorraciais através de sua representação no ensino-aprendizagem de língua estrangeira. Um tema que Aparecida retoma com muita força e que pretendo esboçar neste texto é o racismo cordial, usado por ela em sua pesquisa para definir a cara do nosso racismo.


O racismo cordial não é nenhum palavrão para os negros que vivemos diariamente os constrangimentos em diversos espaços. A palavra "cordial" tem uso conhecido a partir da obra do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda Ferreira. Sérgio era um desses estudiosos dedicados ao entendimento do Brasil e de sua "lógica" de funcionamento. Escreveu essa que é considerada uma bíblia da sociologia brasileira, "Raízes do Brasil", três anos após a publicação de outra bíblia da sociologia brasileira, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre. Ambos os livros trazem sustentáculos funcionais para nossa leitura do que seja "cordial" e dão sustentáculo, assim, ao racismo. Gilberto Freyre, embora de um campo conservador, olha positivamente a ideia de miscigenação do povo brasileiro, tentando responder às ofensas racistas dos "estudiosos" sobre evolução racial do século XIX. A teoria elaborada por ele nega a complexidade de nossa miscigenação e negamos ao negro pobre o direito de ser negro enquanto a elite aprofundava seu sonho de elite de sangue azul europeu. Esses dois sociólogos habitam o imaginário social e acadêmico até hoje e é precisamente por isso que temos que falar sobre eles.

O "homem cordial" de Sérgio Buarque é um homem demonizado, resultado das políticas estatais das velhas elites. Como hoje já entendemos, a demonização do Estado não nos serve como referência num país onde raras vezes teve um Estado forte de fato. Aos poucos, a visão de Sérgio Buarque deixa passar a ideia de que a cultura popular está cheia desse espírito do "homem cordial", que vai se tornando o "espírito universal" do senso comum do pensamento social e racial brasileiro. Jessé de Souza chama atenção para isso no recém-lançado livro "A Tolice da inteligência brasileira", julgando que Sérgio Buarque nada fala sobre o mercado.

Se é verdade que não é possível entender classes sociais e raça sem entender nossa história, é mais verdade que não podemos passar direto sem construir/desconstruir nossas opiniões sobre o que seja ser cordial. Certa vez, ainda no mestrado, fui cobrado por um amigo do Chade, na África Central, contra a nossa "cordialidade". Segundo a tese central dele, um dos motivos do racismo contra nós negros no Brasil tem sido a nossa cordialidade com a violência. Eu me assustei com aquela afirmação que me tomou dois anos para começar a esboçar alguma resposta.

Embora eu ache que devemos superar a análise de Sérgio Buarque, que gerou esse carrossel do republicanismo de nossa democracia burguesa, as palavras daquele irmão africano do Chade me incomodaram o bastante para me exigir uma resposta.

A primeira coisa é que não é uma inverdade que exista o espírito do "homem cordial" entre nós, e ainda acrescento que ele se faz "espírito universal" na mentalidade hegeliana brasileira, essa que também chafurda a mente dos nossos mais perturbadores trotskistas. Ele só pode ser como é através do discurso e de sua formação ideológica. Antes de demonizar o "homem cordial", no entanto, é preciso entendê-lo em sua complexidade.

O homem cordial não é um mal em si. E muito menos um bem. Ele é produto das nossas elites escravocratas e quatrocentonas, e foi criado, como discurso no imaginário hegemônico e em sua formação ideológica, para dar sustentáculo, através das condições raciais (e de classe, porque raciais) aos privilégios brancos de sempre.

O homem cordial é filho das inúmeras leis abolicionistas, descumpridas aqui e acolá por todos os brancos que dominavam e dominam os meios de produção durante o século XIX. Essas leis para inglês ver foram criadas para criar o discurso dominante de um Brasil que creditava suas forças na liberdade e na evolução moderna e burguesa. Mito.

O homem cordial é ainda produto do apagamento das revoltas populares brasileiras, desde sempre. O mito da não-violência, analisado por Marilena Chauí, reforça a ideia de que esse Brasil, cordial, não é violento e violento é o outro, negro, pobre.

O racismo cordial, por sua vez, é também criação dessa elite branca escravocrata e quatrocentona. Quanto mais distante dos capitais simbólicos de classe social mais baixa, mais ele se apresenta. Talvez, e nisso eu insisto, a relação mais próxima entre classe social no Brasil precise passar didaticamente por esse ponto. Sem negar as especificidades das questões de classe social, tomando a cara dos nossos trabalhadores, em sua maioria negros e filhos da escravidão, não há questão de classe social sem se entender a questão racial. Por outro lado, quando um negro está mais próximo dos segmentos de classe média à classe média alta, o racismo fica cada vez mais sofisticado.

O preto, que sofre o racismo físico, verbal ou psicológico de forma bem direta com as humilhações diárias, na extrema pobreza, ouve as tecnologias da linguagem, uma falsa cortesia e as entrelinhas de um discurso racista. "Que legal que você fala inglês", "Como você é bonita, não é?" são frases comuns que, se usadas para agradar, muitas vezes são usadas de forma irônica.

Perceber o racismo cordial não é difícil para quem o sofre sempre. Um amigo meu doutorando que foi a uma boate no Rio Grande do Sul, numa cidade com grande quantidade de baianos trabalhando em trabalhos braçais no Porto, já chegou a ser interpelado por um jovem graduando na casa noturna, amigo de seus amigos, que lhe dizia "Bem, talvez você não consiga entender, mas...".


A tese central que eu defendo é que, no Brasil, o racismo cordial é o grande constituinte do chamado racismo epistêmico. A forma como o negro é excluído da produção de conhecimento tem a ver com a cordialidade de uma universidade conservadora que reserva privilégio para os seus pares brancos e filhos da elite.

Como o nome diz, o racismo cordial se apresenta como cordial e se nega como racismo. Ele é o racismo da pessoa que subentende o seu "nível intelectual". É o racismo de uma colega professora de inglês que, num evento internacional em língua inglesa, me perguntou se eu ia apresentar o trabalho em inglês, duvidando de minha capacidade de me comunicar no idioma. O racismo cordial é ainda o racismo daqueles e daquelas são cordiais e legais com os negros, mas não arredam o pé do seus privilégios históricos.

A segunda tese que defendo e que defenderei nos próximos textos é que o racismo cordial é o grande constituinte do mito da democracia racial que, para se manter como tal, precisa da colonialidade do saber.

Essa tese tem a ver com a produção de uma democracia racial que, para se construir do jeito que é, precisa de um mito. O brasileiro, visto como "cordial", gentil e receptivo, não concebe a violência. Porém, o Estado que violenta, o capital que violenta, não são entendidos como aqueles que verdadeiramente violentam. O mesmo brasileiro que é chamado de "cordial" e receptivo, aceitando a tese de Sérgio Buarque ou a de Gilberto Freyre, é o que é criminalizado se não se domestica aos moldes do capital branca e colonizador e, portanto, chamado de "violento". Esse é o traficante, o morador de rua, a travesti e o militante.

Por último, gostaria de defender a preocupação e emergência de tratar do racismo cordial nos dias atuais. A ausência de preocupação sobre a representação dos negros num livro didático ou nas aulas de artes plásticas nos leva a uma preocupação central de que, com o avanço dos direitos sociais no Brasil, com o combate à fome nos governos de Lula e Dilma, a chegada de milhões de estudantes, sendo os primeiros de sua geração, na universidade, o acesso ao consumo, entre outros, os negros e negras nos espaços de poder passam a ter algumas outras preocupações de combate. Uma delas é a concentração da produção de saber.

Ao dizer que precisamos falar do racismo cordial, penso que precisamos compreender a suposta "cordialidade" do povo brasileiro, cuja tese, para o bem, foi criada para difundir uma visão automática de miscigenação, negando as complexidades e as lutas do povo negro brasileiro, e, por outro lado, ajuda a difundir uma visão de "povo besta", "fraco", "desorganizado", "trouxa", "inferior".

Não só devemos começar a desconstruir o "brasileiro cordial" para desconstruir o racismo cordial, como devemos entender as diversas facetas do povo brasileiro e da cultura popular do nosso povo para a contraposição desse discurso falacioso do pensamento social e racial brasileiro. Só assim podemos produzir nossa própria narrativa.

Apropriação cultural, folclorização cultural e oportunismo









O estudo sobre as culturas é algo muito denso e se divide entre muitas densas correntes teóricas e políticas. O século XX é um eclipse dessas teorias e correntes todas. A semiologia do início do século, por exemplo, constrói na faceta do signo a primeira ponte para sua relação na cultura. Há aqueles que creem na cultura como um mecanismo sumamente organizado e mecanicamente administrável pela própria cultura. Os freudianos e adeptos da Psicanálise se apropriaram dessa análise e fundaram escolas de pensamento baseadas na ideia entre hábitos culturais e formação do indivíduo através do id, ego e superego, além de usarem a excelente teoria freudiana do toque nas mais diversas culturas primitivas. Há também os marxistas que, embora discutam pouco cultura, chegam a minimizá-la até boa parte do século XX, perdendo espaço para os liberais, mas não deixam de ter vozes como Lúkacs e Bakhtin, embora num viés histórico, político e econômico.

Falar de cultura nos tomaria um século de discussões, mas eu venho hoje aqui falar mesmo é de apropriação cultural. O termo que vem gerando polêmicas saudações de Facebook só voltou com toda graças ao retorno da estética ao centro da roda. Adereços como o turbante e lenços, advindos das culturas africanas, cujas elites usavam para se diferenciar, voltaram com toda ao Brasil através da valorização estética do negro brasileiro. O Ilê Ayiê representa muito essa guinada da valorização desde 1974.

A apropriação cultural entra na pauta justamente depois do crescimento da autodeclaração e vitórias sucessivas do movimento negro em relação à identidade, (re) distribuição e reconhecimento. A pertença, como mistura entre (re) distribuição, reconhecimento e fenótipo passa a habitar o imaginário da luta do movimento negro. Porém, tanto a autodeclaração quanto a estética passam por apropriações distintas. A estética desperta nas camadas médias desde uma tentativa de aproximação até um oportunismo de classe.

Como nos alerta o filósofo francês Jacques Rancière, é bom se preocupar com a estética quando falamos em política. É precisamente o jogo da estética e sua suplementação que vai permitir que um signo cultural do povo negro passe para o inventário da suposta valorização do "outro" (no caso dos brancos) como oportunismo de classe. O salvacionismo da estética é tão bem disputado que a afirmação do signo cultural, no caso do turbante e demais signos usados alhures, passam de (auto) afirmação para a máscara do outro. É nesse ponto que entra a folclorização cultural.

O linguista russo Mikhail Bakhtin tem um termo que, se não for bem usado aqui, pelo menos ajudará a entender como os signos de reafirmação passaram a ser entendidos: carnavalização. Aqui, e para ser mais didático, chamarei de folclorização. É precisamente nesse ponto que empacamos. Primeiro porque, como disse, a autodeclaração e afirmação criaram inimigos perigosos no terreno da identidade, ligadas às condições dos fatores econômicos, políticos e sociais que buscaram lhe cooptar. O capitalismo, nessa sua nova fase trata, de transformar tudo em item consumível. Os signos afrobrasileiros não escapam. Com isso, se espera que toda identidade possa ser consumida como capital simbólico. É um fato da nossa era que temos que tentar entender. Como esses signos viram mercadoria, é precisamente claro que se possa entender  que, o que constrói essa polêmica, está no plano do sujeito e não do indivíduo. O sujeito, aqui não desprovido de contexto, sendo negro, usa o turbante para se autoafirmar e se autovalorizar, mas se incomoda com a forma como o seu signo virou apenas mercadoria, com valor de troca bem definido.

O jogo do discurso sobre a apropriação cultural só pode ser entendido se você julgar que nenhuma apropriação é neutra. Elas existem alicerçadas sobre discursos, como é o caso o da (auto) afirmação e do consumo. Como os discursos só são discursos sob a égide da história e do sujeito, é preciso destacar que só sob a tutela do neoliberalismo qualquer coisa pode ser operativa e, portanto, produto. A estética está nesse jogo. O cânone, através dos meios de produção, diz o que é que deve ser "valorizado" e aquilo vira produto. Coloco aspas em valorizado porque o cânone não valoriza de fato nada disso. O mercado, agindo sobre o cânone, disponibiliza e mercantiliza tudo quanto pode, até a identidade. É assim que o mundo ocidental, através do neoliberalismo, coopta quase tudo que não tem militantes atentos e é contra o neoliberalismo que as identidades negras de autoafirmação protestam.

Nesse jogo, o caso de uma menina branca, com câncer, que supostamente foi atacada por mulheres negras que julgaram que ela não deveria usar turbante porque era branca reabre a temporada das polêmicas sobre "apropriação cultural". Como não vi gente séria fazendo esse coro, eu resolvo por entender que o velho oportunismo de sempre, que sempre faz verão reacendendo o debate sobre a suposta democracia racial brasileira, agora se traveste na ideia de "racismo inverso" ou racismo contra brancos.

Nenhum negro se sente inferiorizado com um branco usando seus signos por usar. Mas, como disse acima, já que nenhuma apropriação é neutra, temos motivo de sobra para desconfiar de qualquer uso. E a cooptação pelo capitalismo é um deles. Não por acaso estamos no carnaval onde o negro é sempre usado para ser "engraçado", "fanfarrão" ou, na pior das hipóteses, dançarino de branco. O turbante reacende o debate porque, como retomado como signos dos negros para se sentirem melhor e valorizarem sua identidade, passou a ser o negócio da China. A identidade do carnaval neutraliza a crítica cultural e ideológica e as coisas são vistas apenas como "motivo de alegria". Um grande equívoco. No caso do carnaval, e não do uso cotidiano, as pessoas brancas folclorizam em demasia a identidade negra, agora cooptada e usada apenas como mercadoria. E é o debate de folclorização que quero fazer, já que defendo que a apropriação é um processo (não neutro) da cultura. Nos blocos de carnaval, o turbante vira fantasia, as pinturas da Timbalada viram fantasia, o negro vira fantasia. Se não nos incomodamos com isso, nós não entendemos nem metade da profundidade do debate.

Toda pessoa que queira se apropriar de ícones de outras culturas (e nós negros não estamos isentos) deve saber das consequências. Uma delas é o questionamento da identidade. E como a identidade também não é neutra e é formada principalmente pelos aspectos econômicos e políticos, aqui estamos falando de poder, de macro e microfísica do poder. Não é apenas uma questão de direitos civis, como alguns protestam. O discurso dos direitos civis no mundo ocidental só serve para enquadrar inimigos do Norte, como é o caso da criação do Islã como o inimigo central. O jogo da identidade precisa se preocupar geopoliticamente com isso ou entramos numa encruzilhada desnecessária entre a suposta neutralização e o afã político.

A menina branca que usa turbante discute valorização da estética do povo negro ou usa aquilo como "seu ícone" e apaga o outro? Se não reflete, ela faz a mesma coisa que as pessoas que tiram foto em campo de concentração. E se o faz deveria saber que nenhum signo é sem história e sem sujeitos. É essa a discussão a ser feita aqui em primeiro lugar para combater o que chamo de folclorização. A outra coisa é a representação que esse branco de elite ocupa e que os negros ocupam no carnaval. A branca de turbante desfila os melhores camarotes e blocos com a consciência limpa de quem não sente a morte de dezenas de milhares de jovens negros todos os anos? Então nesse caso ela está folclorizando a cultura, como se faz sempre sem nenhuma reflexão.

Os limites entre o que chamo de folclorização e apropriação são tênues. A apropriação, embora não neutra, existe aqui e ali, agora e sempre, por todos, de absolutamente tudo. Ela é arrefecida pelo consumo. A folclorização é o uso dessa apropriação para o fetiche do signo cultural como mercadoria. O elo entre produtores diretos e indiretos da cultura é perdido e abre-se uma temporada de espaços, contexto e épocas em que essas "máscaras" aparentemente ingênuas são usadas. O maior exemplo é o próprio carnaval. O branco que sai no Gandhy para "pegar mulher" está imerso nessa folclorização intensa, muitas vezes sem parar 5 segundos para refletir. As cantoras brancas do carnaval que dançam e cantam música de preto homenageando os blocos afros da cidade também. E a Black face brasileira não topa ser questionada a título de tirar o armário a sua acusação frágil de "racismo inverso", negando o racismo como processo e assumindo a alma histórica da Casa Grande que passou a comer farinha ao mesmo tempo que matava índio. É intransponível o discurso metido a ingênuo da (des) construção da chamada apropriação cultural porque ele não reflete esse passado, os seus sujeitos e suas posições históricas. É o mesmo discurso que reza a famosa lenda da miscigenação neutra e do racismo sem racista. É o mesmo discurso do mito da não-violência e do homem cordial, tanto usados por Marilena Chauí, numa perspectiva um pouco mais crítica, quanto pelo bíblico Sérgio Buarque, numa péssima perspectiva.

Não devemos e nem podemos dar lugar para o oportunismo. De quando em quando ele vem sendo repetido pelos próprios negros e negras que entram em polêmicas desnecessárias com uma postura não reflexiva e absolutamente defensiva. O negro que é apropriado pelo "Esquenta" da Rede Globo não chora a morte das suas dezenas de milhares de irmãos que morrem todos os anos porque ele foi apropriado pelo centro e folclorizado pelo poder econômico, gerando a conveniência do discurso de superação de sempre e o troféu dos brancos dos meios de produção de sempre. Estejamos atentos para essas polêmicas divisionistas e racistas.

"A raça é um signo duplo, cujo significante aponta para dois significados: opressão e resistência"

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